Reajustes tarifários recém-anunciados não estimulam discussões sobre fontes de financiamento

Por Caio César | 04/01/2019 | 8 min.

Legenda: Ônibus da EMTU exibindo uma das tarifas da linha 133 no Terminal Km 21
Pedágios urbanos, impostos sobre combustíveis e aumentar a tributação sobre o carro são algumas das possibilidades para angariar receitas extra-tarifárias que podem ajudar a equilibrar o jogo

Índice


Introdução

Sem delongas, gostaria de recuperar argumentos que foram publicados no passado e podem nos ajudar em mais um momento de contagem moedas e aperto no orçamento. Sei que a população já está reclamando dos reajustes, contudo, o papel do COMMU é formar consciência crítica. Sem consciência crítica o nível do debate não sobe e as reclamações perdem força muito rapidamente.

O primeiro artigo que quero recuperar foi publicado pela sucursal brasileira do think tank WRI, intitulado “Além das tarifas: fontes alternativas para financiar um transporte coletivo de qualidade”, o artigo sumariza pontos de um evento que contou com a presença de dezenas de pessoas do setor de mobilidade urbana. De imediato, seleciono a fala de Arturo Ardila-Gomez, que argumenta que “se você se beneficia de determinada infraestrutura, deve ajudar a financiá-la”, apontando em seguida algumas possibilidades:

  • Adoção de pedágios urbanos e taxas de congestionamento;
  • Cobrança de impostos sobre combustíveis;
  • Adoção de tributos para os veículos;
  • Cobrança pelo estacionamento em vias públicas;
  • Parcerias público-privadas (PPP) para vias urbanas.

Como o artigo da WRI não explora as possibilidades, decidi realizar uma pequena introdução sobre cada proposta, exceto uma: a ideia de uma PPP para vias urbanas, primeiro, por considerar que talvez seja a proposta mais difícil de ser vislumbrada e; segundo, por acabar remetendo meu raciocínio para casos problemáticos, como o Porto Maravilha, no Rio de Janeiro. Prefiro não explorar a possibilidade de parcerias aqui e deixo o espaço aberto para quem conhecer casos excepcionalmente bons.

Antes de começar, é oportuno dizer que as fontes de financiamento também podem ser revertidas para infraestruturas de mobilidade ativa (geralmente feita a pé e/ou de bicicleta), pois estas infraestruturas precisam estar associadas ao transporte coletivo para que a cidade tenha uma mobilidade verdadeiramente satisfatória, então quando você ler que serve para financiar o transporte coletivo, considere que poderia servir também para implantar, aprimorar e manter praças, calçadas, acessibilidade, mobiliário, ciclovias etc.


Adoção de pedágios urbanos e taxas de congestionamento

Seja como for, Ardila-Gomez não está propondo nada de outro mundo. Para atores como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) a adoção de sistemas de rodízio não deve ser estimulada, pois as pessoas acabam comprando um segundo veículo. Trata-se de um fenômeno que já havia sido adiantado ainda em 1998, como demonstra uma reportagem da Folha de S.Paulo daquele ano.

Se o rodízio não funciona devido ao caráter seletivo, que se dá pela imposição de condicionalidades para circulação conforme o emplacamento, faz sentido pensar que o pedágio urbano ou uma taxa de congestionamento são os substitutos naturais, pois nestes casos não fará diferença possuir dois mais carros com placas diferentes, além do mais, envolvem cobranças adicionais, que reforçam a ideia de mitigação de externalidades.

Falar em externalidades pode soar meio estranho, entretanto, como explica o Guia de Gestão Urbana do site Caos Planejado, “há uma tendência no Brasil de considerar que aquilo que já é pago por impostos, como a implementação do espaço viário, teria de ser oferecido gratuitamente. No entanto, tal gratuidade gera distorções, de modo que os próprios motoristas não assumem o ônus da sobrecarga do sistema viário, gerando externalidades negativas para outros usuários”, ou seja, externalidade é quando o exercício de uma liberdade individual prejudica o bem-estar coletivo.

Como o mesmo guia explica, a lógica de funcionamento da taxa de congestionamento lembra muito o rodízio. O rodízio funciona no mini-anel viário da CET, que basicamente delimita o que se convencionou a chamar de Centro Expandido.

Legenda: Clique aqui para saber mais detalhes sobre a área afetada pelo rodízio

A sugestão do guia é adotar um ou mais polígonos com tamanhos, horários e valores muito bem definidos e sinalizados, buscando desestimular a circulação de veículos nesses perímetros. É uma sugestão interessante, pois poderíamos desestimular o uso do automóvel fora do Centro Expandido, por exemplo, nos centros de bairros, atacando o desagradável hábito de dominar ruas e praças para fazer pequenas compras e atividades que deveriam ser realizadas a pé, de bicicleta ou por linhas locais de ônibus (na capital, conforme os termos ainda vigentes da licitação de 2003, as linhas de caráter local geralmente são operadas por ex-cooperativas e pertencem ao Subsistema Local da SPTrans).

Outra coisa interessante ligada à ideia de taxar o congestionamento de forma pulverizada: pelo fato dela funcionar mais facilmente em múltiplas escalas (diferente de um rodízio que veta a circulação conforme o final da placa numa grande área), pode se tornar convidativa para os municípios da Região Metropolitana de São Paulo, que hoje não adotam absolutamente nenhuma medida de desestímulo ao automóvel. Mesmo a priorização dos ônibus com faixas exclusivas ainda encontra resistência.

Quanto ao pedágio urbano, eu considero ele uma medida, digamos, menos saborosa, pois: (i) ele legitima a presença da infraestrutura a qual está associado, dificultando a racionalização viária e alimentando a ideia de diferenciação daquele usuário em relação ao restante da população; (ii) ainda que alimente uma noção de diferenciação, esta pode ou não estar associada a um sentimento de punição, que acaba por acirrar tensões e pode favorecer argumentos que alimentam o fantasma do “transporte público bom é transporte público que funciona igual meu carro”; (iii) São Paulo adota pedágios no nível estadual e federal, com rodovias se tornando parte de grandes concessões, que por sua vez podem incluir cláusulas de garantia de demanda de volume de veículos, dificultando a implantação de infraestrutura de transporte concorrente, colocando o lucro da concessionário acima do lucro social (menos mortes, menos poluição etc).

Finalmente, em 2008, a Rede Nossa São Paulo identificou que a proposta de um pedágio urbano não era bem recebida, como podemos ver num fragmento retirado do Portal Aprendiz: “pesquisa Ibope, encomendada pela ONG Movimento Nossa São Paulo, revelou que o pedágio urbano foi reprovado por 87% dos 1.512 paulistanos ouvidos em janeiro. Entre os candidatos, só Soninha Francine (PPS) defende abertamente a proposta de cobrança”.


Cobrança de impostos sobre combustíveis

Como vimos na seção anterior, São Paulo seguiu com o rodízio e a única novidade que chegou a ser proposta depois dele foi a municipalização da CIDE (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico). E isso somente durante a gestão de Fernando Haddad, ou seja, da implantação rodízio pra cá, o automóvel manteve um reinado absolutamente estável.


As pessoas têm expectativa de receber um serviço de qualidade pelo que pagam e devem ser o centro do planejamento de uma rede integrada de transporte

A municipalização da CIDE também foi defendida pelo pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) Carlos Henrique Carvalho, como podemos ver no Portal da Câmara dos Deputados. A defesa feita pelo pesquisador está ligada à tramitação de aproximadamente 7 anos de um Projeto de Emenda Constitucional (PEC 159/07).

Se a municipalização da CIDE esbarra na morosidade do Legislativo Federal para aprovar uma emenda (e não deturpá-la durante todo o processo), o mesmo não pode ser dito sobre outras medidas, como cobranças por estacionamento em vias públicas ou pedágios, que independem de emendas e da União, podendo ser adotadas por municípios e estados-membros.


Adoção de tributos para os veículos

Aqui nós temos um ponto mais amplo, pois pode encarecer a compra e/ou a propriedade.

Encarecer a compra seria, por exemplo, fazer o contrário do que andam fazendo nossos parlamentares, que querem reduzir a arrecadação e estimular o uso do automóvel para, supostamente, estimular P&D (pesquisa e desenvolvimento) por parte da indústria automobilística. A indústria não contaria com tais incentivos e comprar um carro ficaria mais caro.

Por outro lado, se encarecemos a propriedade, esbarramos em um probleminha: a guerra fiscal do IPVA. Não deve ser surpresa para muita gente que as frotas comerciais de São Paulo pagam IPVA para Curitiba e Belo Horizonte, embora jamais vão desgastar a infraestrutura das metrópole paranaense ou da metrópole mineira. Um artigo do Valor Econômico elucida a questão da guerra fiscal em torno do IPVA e conclui que, se a União não legislar para fixar diretrizes que visem o equilíbrio da federação, os estados continuarão disputando a receita do IPVA a partir de critérios variados, que, uma vez que não contribuem nem mesmo para o adequado financiamento da infraestrutura rodoviária, passarão longe de ter o transporte coletivo e bem-estar comum dentro de uma lógica de “cidade para pessoas” como objetivo principal.


Cobrança pelo estacionamento em vias públicas

Creio que cobrar por estacionamento é uma medida relativamente fácil e pouco inovadora. Aqui o segredo está na abrangência e na modelagem do sistema. Quem circula pela Região Metropolitana de São Paulo sabe que, enquanto a capital estava presa aos talões, municípios como Santo André e Mogi das Cruzes adotavam parquímetros digitais e aplicativos. As coisas só começaram a mudar na capital em 2014.

Legenda: Um dos vários parquímetros existentes ao longo da Praça Norival Gonçalves Tavares, reduto boêmio de Mogi das Cruzes

Infelizmente, geralmente a cobrança de estacionamento só costuma acontecer em centralidades mais sofisticadas ou consagradas, como o centro do município ou bairros boêmios e gastronômicos. Se o sistema adotar tecnologias confiáveis, com boa relação custo × benefício e tiver boa sistematização, penetrando nos centros de bairros, pode ser uma forma interessante de financiar o transporte público. O The Washington Post também assinala que sistemas de compartilhamento de veículos podem complementar as restrições a estacionamentos.

Finalmente, como a Vox muito bem resume, estacionar de graça força as pessoas a buscarem vagas, é um subsídio que estimula a dirigir, além de ser uma maneira ruim de uso do solo.


Conclusão

Encerro provocando: estamos preparados, mesmo? O custo de certas medidas é, acima de tudo, político. Enquanto parlamentares e cargos do executivo temerem desestimular o automóvel com mais ímpeto, vai ficar difícil conseguir manter a atratividade do transporte coletivo e até mesmo a expansão da malha com alternativas de menor custo, que aproveitam os vastos efeitos do rodoviarismo. É claro que as medidas precisam estar associadas a investimentos na infraestrutura de transporte, porém, é preciso que exista algum ponto de partida e que ele seja parte de um plano muito sólido.




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