Noção de miolo de bairro é técnica, mas questionável

Por Caio César | 22/04/2024 | 9 min.

Legenda: Rua Monte Serrat, que conecta a Estação Carrão ao entorno do CERET (Centro Esportivo, Recreativo e Educativo do Trabalhador). Logradouro está inserido num perímetro que se verticalizou ao longo de décadas. Formato clubístico e elitizado oferece pouco diálogo com a calçada e não estimula utilização do transporte público
Um dos elementos mais presentes na discussão da verticalização mais intensa de uma pequena porção do território paulistano é o “miolo de bairro”. O fato de a maior parte do tecido urbano permitir apenas edifícios de baixo gabarito (ou seja, não muito altos) não é um chute, mas produto de uma visão de cidade que não pode continuar a ser normalizada

Quando discuto sobre a baixa abrangência das zonas permissíveis à verticalização, que compreendem raios de menos de 600 metros, nos melhores casos (estações do sistema metroferroviário), não acho que o parâmetro que determina a proximidade do transporte foi chutado. E é aí que reside o maior problema.

Legenda: As extremamente limitadas áreas de influência da infraestrutura de transporte público, recuperadas no âmbito da tentativa de revisão do Plano Diretor Estratégico pela atual gestão, por meio de um diagnóstico inicial

Para contextualizar: neste artigo, falo, sobretudo, do ordenamento aprovado na gestão de Fernando Haddad (PT; 2013-2017), a partir de 2014, composto pelo PDE (Plano Diretor Estratégico, informalmente chamado de “plano” ou “plano diretor”) e pela LPUOS (Lei de Uso, Ocupação e Parcelamento do Solo, informalmente chamada de “zoneamento”).

Apesar dos avanços do ordenamento, fica o sentimento de que o arcabouço de tomada de decisão e mediação de conflitos é ruim, imaturo e opaco. Durante a conflituosa e intensa dança de atores da sociedade civil e agentes do poder público, protagonizada numa revisão que levou alguns anos, envolvendo tanto o plano quanto o zoneamento, o arcabouço existente não deu conta das disputas.

A revisão, que ainda não acabou, foi e continua sendo um dos episódios mais lamentáveis da política urbana paulistana. Também lamentavelmente, o Coletivo não tem o dinheiro necessário para tensionar a opinião pública e o ambiente político, ficando refém tanto do mercado imobiliário, quanto de associações de moradores de bairros endinheirados.

E mais: não parece existir capacidade ou viabilidade de fazer simulações envolvendo mercado imobiliário. Predomina a ideia de que o adensamento é supérfluo, sem qualquer preocupação quanto aos impactos nas áreas mais suscetíveis à exploração informal e predatória. Muito se fala sobre o impacto de adensar, mas quase nada é dito sobre o impacto de não adensar, apesar da extensão da mancha urbana.

Sejamos francos: não deveria ser segredo para ninguém que o mercado estava feliz com o Plano Diretor da Marta Suplicy (PT; 2001-2005). O mercado não parecia reclamar de um plano que oferecia estoque imenso, baixas exigências e que negligenciava o transporte público. As associações de moradores de bairros ricos adoravam, porque a verticalização acontecia a conta-gotas, impedindo queda no valor do m² e mantendo os níveis da oferta em patamares imorais; o mercado estava feliz, porque não precisava se preocupar nem mesmo com profissionais jovens e bem-sucedidos, focando nos segmentos mais rentáveis, como imóveis para famílias de classe média alta e alta, com perfil clubístico, plantas acima de 50 m² e abundância de vagas de garagem.

Legenda: Edifícios no “miolo de bairro” do Jardim Anália Franco, observados na Rua Luiz dos Santos Cabral. Fotografias de 15/03/2020. Clique na fotografia para abri-la e ampliá-la

Ora, na porção mais rica da Zona Leste, a Porte fez edifícios de até 50 andares nos “miolos” do Tatuapé e do Jardim Anália Franco, e, provavelmente, deixou de ganhar muito dinheiro com o plano aprovado na gestão Fernando Haddad (PT), apesar da louvável mudança de tom da empresa. Para o resto de nós, o problema do plano da era Marta foi, aliás, justamente o que tornava sua digestão fácil pelos mais ricos: ser um ótimo plano, mas só para quem tinha dinheiro e não fazia questão de qualificar o tecido a partir do transporte público.

Legenda: Edifício Figueira Altos do Tatuapé, um condomínio residencial de luxo com 52 pavimentos, observado das ruas Serra de Japi (fotografia à esquerda) e Itapeti (fotografia à direita). Fotografias de 15/03/2020. Clique na fotografia para abri-la e ampliá-la

Não por acaso, foi feito pela prefeitura de uma socialite.

“Ah, mas teve os CEUs, teve o Bilhete Único”. Teve mesmo, mas nada disso era considerado pelo mercado imobiliário formal, regulado. Não passou de um pequeno grande afago numa cidade historicamente violenta e desigual, que via o sistema de ônibus privatizado pela dobradinha conservadora, formada pela dupla Paulo Maluf (PDS, PPR, PPB; 1993-1997)-Celso Pitta (PPB, PTN; 1997-2001), colapsar.

O ordenamento do período Marta foi, também, uma grande sinalização de desistência em relação às remoções. E esta é mais uma contradição a carregar: consolidamos mananciais ocupados com CEUs (Centros Educacionais Unificados), em outras palavras, clientelismo na máxima potência.

Eis o contexto que pouco tem aparecido nas discussões em torno da revisão do ordenamento. A antiga prefeitura de Marta Suplicy jamais deveria ser tratada como modelo inequívoco. Foi uma gestão de uma pessoa elitista, com um secretário de transportes atravessado por polêmicas e controvérsias — uma das últimas em 2020.

E, se as zonas que permitem verticalização mais intensa não foram chutadas, similarmente, os chamados “miolos de bairro” também não devem ter sido produto de achismo. Admitidamente, miolo de bairro é, sim, um termo abrangente, mas que dialoga com o zoneamento a partir de um arcabouço questionável.

A noção de miolo de bairro entrega aquilo que São Paulo é: uma Los Angeles à paulista, uma cidade em eterna negação, terceirizadora de responsabilidades, produzida privadamente, extremamente fragmentada. Traduz a visão racista e preconceituosa do transporte público, bem como o desejo de usar o automóvel até ninguém mais conseguir respirar.

O miolo de bairro é técnico, porque a técnica pode justificar absolutamente qualquer coisa. Não é chutado, é produto de uma visão ruim. Quem aqui pode peitar Nabil Bonduki (PT), relator do plano na época do Haddad? Quem aqui pode desafiar a Raquel Rolnik? Quem aqui tem o poder necessário para mobilizar multidões a ponto desse pessoal ter uma diarreia diária de tanto nervoso? Ninguém.

E é por isso que nossos intelectuais ficam falando de uma cidade ambígua, contraditória e fazendo alpinismo nas nossas costas. Simplesmente acreditam piamente que viver perto do transporte público é sinônimo de viver a 600 metros ou menos de uma estação. Acreditam piamente que o restante da cidade é, ao mesmo tempo, bucólica e sem transporte público digno de nota.

Parece estupidez? Parece. Soa terrível, negacionista, anacrônico, todavia, quem aqui leciona na USP, banca contas de partido político, possui mandato, percorre os corredores da política e da intelectualidade paulistana? Ninguém, de novo.

Infelizmente, os instrumentos incorporados nas leis que formam o ordenamento do que pode ou não ser feito na cidade, dependem de gente. Gente esta que consome no mercado. E é aí que as coisas começam a perder tração quando você é parte de uma sociedade marcada por uma violenta assimetria de renda e poder.

Cada vez mais, estou convencido de que o cerne das péssimas discussões urbanísticas está no consumo. Uma parcela do campo progressista parece viver uma síndrome de impostor quando se trata das trocas que realiza em um ou mais mercados. O consumo se entrelaça com uma série de padrões demográficos, dando indícios sobre renda, deslocamentos, nível educacional, entre outros aspectos. É a partir do consumo que sedimentamos nossa relação com a cidade.

Sim, gente e mercado, os elementos voláteis e contraditórios da política urbana, constantemente escamoteados para ludibriar incautos. Sabendo que, no capitalismo, virtualmente tudo é mercado, a cidade também passa a ser um grande mercado — nem mesmo existiria a necessidade de cidade sem mercadoria. A cidade é uma feira. Sempre foi.

A noção de DOT (Desenvolvimento Orientado ao Transporte) era ridiculamente vulnerável no premiado plano de Fernando Haddad. Isso era evidente. Como podemos falar em menos de 600 metros para toda e qualquer estação na cidade? Significa dizer que o potencial de verticalização teórico e, consequentemente, de adensamento formal, mais salubre, é exatamente igual na Estação Dom Bosco, em Itaquera, e na Estação Fradique Coutinho, em Pinheiros.

Legenda: Passarela utilizada para transposição da rodovia urbana Jacu Pêssego, parte da Estação Dom Bosco da Linha 11-Coral (Luz-Estudantes). Fotografia de 21/10/2018. Clique na fotografia para abri-la e ampliá-la

É lógico que a homogeneização da estruturação da verticalização mais intensa expressa uma visão absurda, ainda que melhor do que o plano liberal, preguiçoso e condominialista da Marta, mas ainda assim, muito ruim. Plano e zoneamento aprovados na gestão Haddad foram, desde sempre, uma conciliação nos moldes petistas de sempre: liberal e covarde.

A disputa que tentamos fazer durante a revisão foi mostrar que precisávamos ampliar o adensamento (principalmente no Centro Expandido) e reduzir a covardia. Impossível, como ficou claro. Conclusão: se não houver ninguém com muito dinheiro para comprar essa briga, não adianta achar que o povo, alijado do debate pela própria condição de sobrevivência, vai operar milagres.

Cabe salientar ainda que ter um plano mais ou menos suscetível à rapidez do mercado — provocação que surge no bojo da locação de curta temporada e outros desafios recentes — é uma escolha do Executivo, porém, faz-se necessário considerar que o mercado em São Paulo é preguiçoso e produz coisas muito nocivas para a cidade. Ele nega a cidade. Constantemente. O comércio ficava comendo pelas beiradas, num parque de edificações antigo, assobradado, enquanto o mercado produzia condomínios clubísticos e o consumo mais sofisticado ou ficava concentrado em construções igualmente ruins, de baixo gabarito, dignas dos subúrbios de Houston, no Texas, ou trancado em shoppings.

Legenda: Edifícios no “miolo de bairro” do Tatuapé, observado das ruas Itapeti (fotografia à esquerda) e Monte Serrat (fotografia à direita). Fotografias de 15/03/2020 e 21/07/2021, respectivamente. Clique na fotografia para abri-la e ampliá-la

O pouco de uso misto menos permeado por restrições é velho, de quando o rico usava bonde e de quando o avião não ameaçava os trens, que ainda tinham uma primeira classe. A lacuna só começou a ser alterada com o ordenamento do Haddad.

Será mesmo que podemos considerar que o plano fez efeito? Não temos métricas. A reportagem que suscitou este artigo pega dados preliminares do Censo e extrapola conclusões — assumindo que a Folha foi capaz de cruzar tudo com qualidade, afinal, nada ali é de código aberto.

Precisamos fazer “cidade de verdade”, até mesmo para desestimular a grilagem de terras, um excelente mercado para as vereanças, e que não vai acabar tão cedo. Fazer cidade de verdade implica em muito mais oferta de moradia, ainda que se traduza num processo lento e sutil — uma vantagem, pois o torna mais fácil de ser visto com ceticismo, reduzindo conflitos com desfecho violento à medida que a grilagem é inviabilizada.

Finalmente, cabe insistir em duas provocações adicionais estratégicas: (i) falar em emancipação; e (ii) envolver os municípios do entorno. Aliás, os municípios vizinhos, todos os dias, lembram o que era São Paulo na época da Marta: condomínios-clubes para todos os lados, obrigatoriedade de vagas de garagem, metragens mínimas desestimulando quitinetes, verticalização difusa, desprezo ao transporte de maior capacidade. Santo André, São Bernardo do Campo, Mogi das Cruzes, Barueri e tantos outros continuam permitindo práticas anacrônicas e rodoviaristas.


Colaborações: Pedro Geaquinto (interlocução no grupo do Coletivo no Telegram, do qual parte da discussão foi extraída e utilizada como matéria-prima para este artigo)



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