São Paulo sem São Paulo: redefinindo o papel da metrópole

Por Caio César | 11/02/2024 | 8 min.

Legenda: Estação São Caetano do Sul da Linha 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra), parte do Serviço 710 (Rio Grande da Serra-Jundiaí)
Aproveitando que a ideia de descentralização tem sido capturada para mascarar interesses espúrios de segregação espacial, que tal falarmos de uma São Paulo que não envolve a capital ou, melhor dizendo, uma São Paulo que não envolve as parcelas do território que são tratadas como sinônimo de São Paulo, ou seja, o Centro Expandido?

Cerca de metade da população da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) reside nos 38 municípios que orbitam ao redor da capital e, mesmo dentro da capital, parcelas significativas residem a uma distância considerável (a 20, 30 ou mais km de distância) das novas centralidades constituídas ao longo do rio Pinheiros, como Vila Olímpia, Itaim Bibi, Berrini e Faria Lima.

Por que um morador da Zona Leste deveria tratar o parque Ibirapuera como principal parque do município, quando reside a uma distância mais curta dos parques do Carmo, do Piqueri ou do Ceret? Há ainda situações em que pode ser mais conveniente buscar parques fora da capital, como já apontamos em 2016, utilizando como exemplo o Parque Centenário da Imigração Japonesa, em Mogi das Cruzes.

Similarmente, considerando que o Grande ABC possui núcleos flagrantemente boêmios no Bairro Jardim (em Santo André) e no Jardim do Mar (em São Bernardo do Campo, ao longo da Avenida Kennedy), faria sentido priorizar Pinheiros em detrimento das opções locais?

Por que um morador de Itapevi, Jandira ou Carapicuíba deveria ignorar a presença de oportunidades de trabalho em Alphaville, selecionando apenas vagas de empresas instaladas ao longo das avenidas Brigadeiro Faria Lima e Paulista?

Em todos os casos citados, percebemos que a região metropolitana já é, de fato, descentralizada. Pode não ser, e provavelmente nunca será, completamente descentralizada, simplesmente porque violaria qualquer noção de economia de escala associada às cidades. Não há como “ter tudo em todos os lugares”.

Admito que não selecionei os exemplos a esmo. Devido à configuração predominantemente radial dos principais troncos de transporte coletivo, principalmente, daqueles do transporte coletivo sobre trilhos, o acesso ao Centro Expandido é privilegiado em detrimento do acesso entre centralidades localizadas fora dele. Na prática, a estrutura da malha reforça uma dicotomia periferia-centro, ainda que algumas das periferias atendidas tenham rompido com uma relação de total dependência.

Diga-se de passagem, é curioso como a defesa da descentralização, quando a serviço de grupos reacionários, imiscuídos na forma de associações de bairros da capital paulista, que concentram não só riqueza, mas prestígio e laços com elites acadêmicas e empreendedores sociais de maior visibilidade (vulgo, “a nata” do terceiro setor), jamais assume formas concretas.

Convenhamos, se o discurso hegemônico dentro do campo progressista, infeliz aliado das associações reacionárias, ainda não consegue (ou não quer) entender os problemas que permeiam os exemplos acima, como esperar ações mais enérgicas envolvendo periferias com indicadores preocupantes, dentro e fora da capital paulista?

Eis a contradição apresentada por mim em ensaio recente: impulsionar a descentralização passaria, em primeiro lugar, por enfraquecer elementos intangíveis do tecido, como são capitais que se cristalizam sutilmente na passagem e nas relações interpessoais. Em última medida, uma maior descentralização, sem qualquer alteração na distribuição de atividades, dinamitaria o poder de grupos que, atualmente, envenenam a opinião pública.

Eufemismos No bojo dos meus deslocamentos entre São Paulo e São Bernardo do Campo, comentei com outros membros deste Coletivo sobre como é muito fácil ser transformado numa espécie de caricatura ao tentar discutir diferentes porções da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo). Nada contra Paris, mas a São Bernardo do Campo chego de ônibus Há alguns dias, voltei a me deslocar diariamente para São Bernardo do Campo[1] e, ao longo de uma semana, suspeito que já acumulei material suficiente para fomentar discussões por meses, escrevendo artigos, publicando no Instagram, dialogando internamente com outros membros no Telegram, etc.

Certos atores não possuem a capacidade ou o desejo de defender qualquer ideia crível de descentralização, pois enquanto erguem a bandeira da descentralização, caçoam das centralidades inegavelmente cristalizadas nas paisagens do Tatuapé e de Alphaville.

A chacota pode até não ser explícita, mas existe e é um dos ingredientes do veneno. Ora, como defender a necessidade de uma melhor conexão entre as alamedas mais dinâmicas de Alphaville e o sistema de trilhos, quando, nos bastidores, seus habitantes e negócios são alvo de chacota?

Similarmente, como discutir o adensamento do entorno da Estação Tatuapé, bem como as movimentações em torno de uma iniciativa de desenvolvimento imobiliário conhecida como “Eixo Platina” (associado ao eixo da rua Platina, notadamente entre as estações Tatuapé e Carrão), quando a verticalização é resumida em adjetivos como “brega”, “cafona” e “monstruosa”?

Legenda: Exemplo de empreendimento na rua Platina. Da esquerda para a direita: Geom 652 e a presença de térreos ocupados por estabelecimentos comerciais, no sentido da Estação Tatuapé e da Estação Carrão (fotografias de julho de 2021)

Legenda: Exemplo de empreendimento na rua Platina. Da esquerda para a direita: Platina 220, com detalhe do pergolado que cobre o passeio interno e vista de uma das fachadas, bem como do térreo, ainda desocupado (fotografias de setembro de 2022)

Qual outra região da Zona Leste possui ou já possuiu mais de 2 mil m² ocupados pelo Itaú? Nenhuma.


O Itaú irá ocupar 2.400 metros quadrados em três andares, a Livance, uma laje de 800 metros quadrados e, a Perfect, meia laje (400 metros quadrados). Outros contratos estão em fase de assinatura e não podem ser divulgados.

Não há o que defender. Não há o que discutir. Há o que encenar. Sim, encenar! A descentralização, quando tratada de forma convenientemente abstrata, não passa de um teatro.

A melhor maneira de falar sobre descentralização é admiti-la e, consequentemente, abraçá-la.

A mim, abraçar a descentralização foi inevitável: como morador da Zona Leste, teria sido um desperdício ignorar oportunidades de lazer e consumo em Mogi das Cruzes e Guararema. Como profissional, teria sido devastador negar a presença da Universidade Federal do ABC e, consequentemente, abdicar de uma oportunidade de trabalho que resultou em mais de 3 anos de experiência no desenvolvimento de planos diretores e de mobilidade. Como trabalhador de base, teria sido lamentável gastar 1h30 para se deslocar até galpões na Lapa e na Barra Funda e, em seguida, encerrar o expediente sem aproveitar as facilidades existentes em Osasco e Barueri (incluindo Alphaville).

Ao longo de cerca de dez anos publicando artigos que refletem muitas das minhas vivências como cidadão metropolitano, eu nunca recebi apoio ou estabeleci diálogos produtivos com indivíduos e associações que, nos últimos anos, têm se colocado como aliados da descentralização. O COMMU (Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana), como grupo de indivíduos que insistem em teses que fortalecem a Região Metropolitana de São Paulo e a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), nunca foi alvo de qualquer tipo de ação positiva envolvendo associações de endinheirados e seus aliados, muito pelo contrário.

Desde 2016, pelo menos, há cerca de oito anos, alertamos que a privatização das linhas 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno) e 9-Esmeralda (Osasco-Mendes·Vila Natal) poderia amesquinhar o futuro do Trem Metropolitano.

Prólogo A ideia de conceder a CPTM à iniciativa privada não é nova, na realidade, a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos nada mais é do que uma empresa que planeja e projeta a expansão de uma malha que é totalmente dependente da contratação de empresas privadas para funcionar, seja na manutenção dos trens, passando pela limpeza das estações e atendimento de balcão, até chegar nas obras de modernização da infraestrutura.

Nenhuma associação reacionária, antes, durante ou depois daquele ponto em nossa história, se importou com duas linhas que são essenciais para a manutenção de uma série de centralidades de menor hegemonia, a saber:

  • Osasco e seu calçadão, que se inicia numa das faces da Estação Osasco, constituindo um polo de comércio popular que só perde para a rua 25 de Março, na capital paulista;

  • Osasco e o eixo da Avenida dos Autonomistas, que pode ser acessado, entre outras formas, por uma caminhada entre a Estação Presidente Altino e o Shopping União de Osasco;

  • Carapicuíba e seu calçadão, que se inicia numa das faces da Estação Carapicuíba, tendo sido objeto de um programa qualificador de iniciativa da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos, em risco de extinção há quatro anos, por força da Lei 17.293/2020);

  • Alphaville, acessível a pé e/ou de ônibus a partir de diferentes estações, como Barueri, Antônio João, Carapicuíba e General Miguel Costa.

Ademais, praticamente todos os outros municípios não mencionados na lista acima, mas servidos pela Linha 8-Diamante, desenvolveram seus centros a partir das estações, concentrando no entorno delas equipamentos públicos, terminais de ônibus e comércio popular. Centros estes que são tão bons ou melhores do que os famigerados “centros de bairro” em São Paulo.

Em suma, mais do que chacota, o que temos é um quadro de agudo ostracismo em relação a qualquer tentativa de desenvolvimento que fuja da hegemonia de um punhado de feudos paulistanos. É nítido que certos atores não só optam pelo escárnio, como também são adeptos do boicote. Não por acaso, a chacota apresenta um tom raso, adquirindo também um papel desinformador.

Cada vez mais, estou convencido de que o cerne das péssimas discussões urbanísticas está no consumo. Uma parcela do campo progressista parece viver uma síndrome de impostor quando se trata das trocas que realiza em um ou mais mercados. O consumo se entrelaça com uma série de padrões demográficos, dando indícios sobre renda, deslocamentos, nível educacional, entre outros aspectos. É a partir do consumo que sedimentamos nossa relação com a cidade.

Felizmente, a verdadeira virada de chave não exige mudar de casa ou de emprego, muito menos ingressar numa universidade. Basta adquirir uma postura menos ingênua e preconceituosa e, quem sabe, em algum momento do futuro, embarcar naquele trem e/ou naquele ônibus.

E finalizo com um desafio: considerando que boa parte da população reside na “zona de boicote”, que tal tentar inverter o jogo? Moradores do Centro Expandido poderiam fazer isso facilmente, já que possuem acesso a virtualmente todas as centralidades boicotadas, já pessoas da “zona de boicote” que têm emulado os comportamentos da população das áreas centrais paulistanas, poderiam começar dando uma chance às centralidades mais próximas.




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