Esquinas mortas ou indignação seletiva?

Por Caio César | 28/05/2025 | 10 min.

Legenda: Figueira em processo de supressão na Vila Mariana
Entre calçadas deterioradas em ruas pouco arborizadas, sobrados com duas ou mais vagas de garagem e quadras dominadas por edifícios clubísticos de baixa densidade sem fachada ativa, o problema parece estar em novos edifícios com mais tipos de apartamentos e comércio no térreo, não em décadas de má urbanização e segregação socioeconômica normalizada

Índice


Contextualização

Nos últimos dias, o corte de uma figueira na Vila Mariana foi assunto em diferentes redes sociais, por diferentes pessoas, incluindo pessoas com ensino superior completo e trajetória acadêmica inegável. Foram várias as manifestações que, embora legítimas, parecem repetir os cacoetes de sempre. Quero, aqui, desafiar a ideia de “morte de uma esquina” presente em diferentes momentos nas últimas semanas.

Legenda: Algumas das publicações realizadas em redes sociais. Uma bolha muito bem conectada escolhe sem remorso suas preocupações e a cidade incluída nelas é do tamanho de uma ervilha. Clique na montagem para abri-la e ampliá-la

Para começarmos bem, que tal sermos objetivos desde os primeiros parágrafos? O empreendimento The Rose é o responsável pela supressão arbórea e está localizado junto a um importante acesso da Estação Ana Rosa das linhas 1-Azul e 2-Verde do METRÔ (Companhia do Metropolitano de São Paulo), no encontro da rua Domingos de Moraes com a avenida Conselheiro Rodrigues Alves (lado oposto à rua Vergueiro, portanto).

A antiga esquina era formada por um supermercado voltado às classes mais altas, com a bandeira Pão de Açúcar (dotado de uma fachada pouco permeável com acesso para pedestres junto à Domingos de Moraes, além de um acesso ao estacionamento junto à Conselheiro Rodrigues Alves), além de alguns edifícios de baixo gabarito (junto à Conselheiro Rodrigues Alves).

Numa perspectiva alicerçada nos transportes públicos, apesar da localização central e extremamente estratégica, a poucos minutos do Parque Ibirapuera, da Avenida Paulista e da facilidade de acesso a outros eixos estratégicos, seja pelo sistema de trilhos ou pelo sistema de ônibus da capital, as feições eram suburbanas, desperdiçando mais de 7 mil m².

O amplo estacionamento do Pão de Açúcar, além de agressivo e estimulador de péssimos hábitos em torno da utilização de automóveis, introduzia mais um conflito entre pedestres e motoristas nas nem sempre bem mantidas calçadas da Conselheiro Rodrigues Alves; os edifícios de baixo gabarito não acompanharam a evolução da infraestrutura e tolhiam artificialmente a oferta habitacional, contrastando com edifícios clubísticos e excessivamente recuados que se difundiram em direção ao parque.

E não para por aí! O Pão de Açúcar, em termos de área brutal explorável, âncora da esquina que hoje passa por transformações pelas mãos da Trisul, voltará a operar, pois é parte do empreendimento imobiliário que resultou na supressão da figueira.

Em 2021, para além do Pão de Açúcar com ares de galpão de beira de estrada, havia drogarias e outros pequenos comércios, como um açougue e uma loja de calçados. O processo de demolição dos imóveis foi paulatino, conforme observável em registro do Google Street View, levando cerca de quatro anos.

Não foi possível identificar nenhum esforço de rastreio do capital que explorava atividades comerciais anteriormente, consequentemente, seria leviano assumir uma expulsão irremediável. Pesa ainda que as atividades antes existentes não só não prezavam pela construção de uma identidade única ou de difícil reprodução, como seguem existindo, ainda que por meio de outros estabelecimentos em diferentes pontos, seja da própria Conselheiro Rodrigues Alves ou do entorno do Largo Dona Ana Rosa (no caso do Pão de Açúcar, por exemplo, além do Minuto Pão de Açúcar, há unidades do Extra, do Dia e do Carrefour Express relativamente próximas).

Antes de iniciar uma tangente problematizadora, reitero: a Conselheiro Rodrigues Alves ainda é o endereço de múltiplos condomínios de apartamentos de metragem generosa sem fachada ativa, os quais nunca parecem suscitar qualquer tipo de crítica. Ah, e ao contrário do empreendimento da Trisul, na verticalização clubística do passado, é preciso ter bolsos profundos, pois não há a oferta de unidades pequenas de 1 dormitório.


Seletividade

Como morador da Zona Leste paulistana com passagem pela UFABC (Universidade Federal do ABC), foram inúmeras as situações nas quais percebi colegas se escandalizando com a verticalização nas áreas centrais da capital, enquanto o surgimento de torres de médio-alto padrão — visíveis a partir do campus de São Bernardo do Campo — passavam sem apuros. Vitra Patriani, o mais recente empreendimento vertical, está sendo construído no antigo centro de educação do trânsito, parte de um controverso pacote de 38 terrenos públicos.

Legenda: Vitra Patriani em obras. É claro que tem aquela pegada de subúrbio — eu rotulo assim para provocar — e a densidade nem deve ser das maiores, além de ser cheio de estacionamentos ao redor (do ginásio poliesportivo, do fórum, da UFABC, da secretaria que também deve ter o terreno vendido para a Patriani, etc); o gabarito não tem nenhuma relação com a infraestrutura ou a falta dela (não há linha de metrô por perto e o corredor de ônibus mais próximo é uma faixa exclusiva glorificada, cheia de trechos de tráfego compartilhado, sobreposição excessiva, itinerários longos demais e oferta meia-boca). Clique na fotografia para abri-la e ampliá-la

Tal olhar seletivo me incomoda bastante, mas também diz muito sobre a forma pequena de pensar a cidade concreta, que vai bem além de um punhado de bairros de São Paulo e possui assimetrias bastante violentas no tipo de experiência que oferece, a depender da “loteria” do CEP e do nascimento.

Abaixo estão elencadas cinco situações comuns, todas acompanhadas de alguns comentários e esclarecimentos. Em alguns casos, foram incluídas fotografias também. 1. Defender bairros residenciais de baixa densidade ao lado de importantes centralidades Aqui temos um dos maiores reflexos de um processo de urbanização fragmentado e conduzido pelo mercado, que quando não estava desregulado o suficiente, buscava capturar o poder público para garantir a predominância de suas práticas, supostamente as melhores práticas.

Serei, mais uma vez, extremamente objetivo: a preservação era obrigatória? Não era, né? Os indivíduos e grupos com comportamento NIMBY de fato lutam para melhor arborização, dentro e fora dos lotes? Não lutam, né? Quando tudo vira pretexto para manter o caráter do bairro, sem que ninguém esteja disposto a problematizar o caráter e associá-lo com questões estruturais, então, é só isso: pretexto.

Legenda: No caso são-bernardense, é impossível ignorar a abundância de crateras formadas por estacionamentos ao ar livre. Um deles, do complexo formado por Carrefour, Sodimac e McDonald’s, possui área visivelmente maior do que a do Parque Raphael Lazzuri. Imagem extraída do Google Earth, antes da construção das torres do Vitra Patriani

Eu acho irônico o empreendimento chamar The Rose e derrubar a árvore? Acho! Só que, no lugar de indignação seletiva que também tem alcances assimétricos (territorial e socialmente, é minúsculo, mas politica e intelectualmente, vai de médio a alto bem mais facilmente), eu sempre vou problematizar o pacote todo e a disfuncionalidade das disputas em torno do ordenamento, pois elas são tranquilamente capturadas por essa “mentalidade de quintal”.


Simbolismo

Quando o limite de município é ultrapassado, múltiplos “portais” já foram cruzados: não existe imprensa decente, os profissionais de alta remuneração que desenvolvem trabalhos intelectuais tratam a universidade como um fragmento acessado por carro, a indignação é menor, os trens (quando existem) possuem seu protagonismo negado… é um grande tecido que não importa. É o ABC inteiro, é toda a parte "feia" do Sacomã — feia por ser vampirizada pelo rodoviarismo suburbanista — depois vem a Zona Leste inteira...

E quando eu questiono isso por meio do Coletivo, aparece uma Verônica e acha que estou interditando os outros, sendo que apenas aponto a hipocrisia e como poder e renda interferem na indignação

Tem muita coisa acontecendo na cidade tangível, mas a todo momento, sempre fico com a impressão de que é impossível competir com bairros centrais que nem são tão densos, os quais compõem uma cidade simbólica com projeção muito maior do que o resto da cidade tangível, ainda que formada por bairros que, pasme, apresentem densidades dignas de um subúrbio de classe média na Zona Leste paulistana.

Em outras palavras, no dia a dia do Coletivo, nos deparamos com um punhado de pautas oriundas de bairros centrais paulistanos e observamos que extrapolam dinâmicas que envolvem linhas inteiras do sistema de trilhos. É totalmente simbólico. Não tem relação com a cidade tangível ou cristalizada, mas com grupos que, mesmo não tendo tanto poder e renda quanto forças capitalistas mais sofisticadas (como os maiores atores do mercado imobiliário), possuem mais poder e renda do que milhões de habitantes somados — grupos estes que não percebem e, quando são criticados, não aceitam algo que é óbvio, explícito, gritante.

Não seria autoexplicativo um dos nomes mais intermunicipalistas da UFABC não ser brasileiro Outros nomes que tratam de temas similares também não são brasileiros na UFABC — recordo-me que discuti a região do Grande ABC numa disciplina com um professor alemão, Klaus Frey, que traçava paralelos com o Vale do Ruhr. Outro nome que não é brasileiro e discute as relações produtivas em escala e contexto similares é o Gerardo Alberto Silva.

Pode ter sido coincidência, considerando que também não aparece nada da USP (Universidade de São Paulo) pelas estrelas de sempre da arquitetura e do urbanismo, fora a necessidade de se fazer um esforço extra para capturar tanto o que vem do Observatório das Metrópoles e seus núcleos, quanto a produção do Centro de Estudo das Metrópoles.

Várias coincidências, né?

A gente precisou esperar a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) existir precariamente na Zona Leste e aparecer um docente negro para discussões básicas da classe trabalhadora ganharem um mínimo de visibilidade para além de trabalhos pontuais de gente que pode se formar e terminar no Itaú, na 99 ou qualquer outra coisa descorrelacionada com a formação

Outra coincidência, talvez?


Hipocrisia

Qual a dificuldade de defender um projeto urbano minimamente consistente para algumas quadras da Vila Mariana, sem repetir o mesmo papinho hipócrita e raso de sempre?

O bairro pode ser muito mais arborizado, basta parar de tratar ruas e avenidas como tapetes vermelhos para carroças glorificadas. Ademais, no próximo esforço legislativo associado ao ordenamento – leia-se: Plano Diretor Estratégico e Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo —, há a possibilidade de buscar uma arborização mais intensa no interior dos lotes, principalmente quando a metragem total é elevada e os tipos de unidades se traduz num leque muito amplo e capaz de cobrir diferentes rendas elevadas.

Não é como se o eixo da Conselheiro Rodrigues Alves fosse exemplar. As calçadas da estação são deprimentes. A profusão de comércio em sobrados velhos e ruins não só cria um imenso estoque subutilizado em lotes que também deveriam abrigar escritórios e habitações, mas também contribui para uma atmosfera suburbana, pois a morfologia inadequada é agravada pela oferta de vagas para carros junto à fachada.

Legenda: Prioridades num centro expandido que se recusa a “ter cara de centro”, entregando infraestrutura e possibilidades compatíveis com sua geografia. Clique na fotografia para abri-la e ampliá-la

Os edifícios mais antigos nunca são problematizados. É como se a cidade fosse perfeita antes do crescimento associado ao atual plano diretor. Como levar a sério um discurso que ignora o passado ou, pior ainda, insiste em recuperar parâmetros indutores de “paliteiros” e “muros de garagens”, como imensos recuos, proibição ou não obrigatoriedade de fachada ativa, múltiplos andares de estacionamentos, zero oferta de unidades pequenas (e, consequentemente, mais acessíveis), entre outros problemas.

A esquina anterior era péssima, a situação continua ruim se afastando da Estação Ana Rosa, o preço do m² é exorbitante, várias das amenidades comerciais priorizam consumidores viciados em automóveis, bicicletas precisam dividir espaço com automóveis em rotas sinalizadas sem qualquer preocupação concreta com a integridade física de quem pedala, cruzamentos não são elevados, semáforos impõem longas esperas para pedestres, não há mobiliário, não há oferta de sinalização específica para pedestres, existem imóveis ociosos há anos sem suscitar metade da indignação, a arborização é inconsistente e relapsa… preciso continuar?




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