Imobiliarismo ou dupla moral de memória curta?

Por Caio César | 03/06/2025 | 5 min.

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Nestor Tupinambá parece ter mirado em agendas positivas, como a priorização viária de ônibus e a construção de linhas de metropolitano, mas terminou errando alvos e distorcendo soluções. O resultado: mais uma crítica com objetivos secundários

De partida, fica a impressão de que, para Nestor Tupinambá, todas as dimensões discutidas em seu novíssimo artigo “Rodoviarismos e outros ‘ismos’” são capturadas pelas incorporadoras. Ao citar o tenebroso caso do túnel proposto para a avenida Sena Madureira, por exemplo, insere benefícios imobiliários estranhos. Ora, para adensar a Vila Mariana com empreendimentos verticais já há eixos associados a estações de antigas linhas, incluindo a pioneira 1-Azul (Jabaquara-Tucuruvi).

O túnel pouco contribuiria para abrir “espaços para se construírem torres, shoppings e hotéis em zonas nobres da cidade”. Seria apenas uma solução viciada de mobilidade, que tem, sim, o carro como objeto primário, inserido numa lógica de articulação muito mais associada ao sprawl (urbanização difusa) do passado, que mesclou subúrbios verticais e horizontais.

O caso da concessão da rodovia Raposo Tavares, tal como exposto, faz parecer que existe uma verdadeira reserva ambiental, quando são flagrantes os imensos conjuntos de condomínios, com seus campos de golfe e núcleos de lazer e consumo baseados no automóvel e na segregação socioeconômica e étnica-racial — igualmente flagrantes quando olhamos para as periferias a norte, nos municípios de Osasco, Carapicuíba e Jandira.

Em nenhum momento o uso e ocupação é problematizado por Tupinambá, o que esvazia as comparações entre a Pesquisa Origem e Destino 2023 e práticas exitosas encontradas, por exemplo, na Europa. Aliás, o atendimento metroviário para uma região como a cortada pela Raposo é muito mais próximo de sistemas como MARTA ou BART — a imagem de trens no subterrâneo projetada nas entrelinhas pelo engenheiro não condiz com a morfologia predominante, tendo sido omitido no texto que o METRÔ (Companhia do Metropolitano de São Paulo) rebaixou a linha e reduziu sua capacidade.

Vale ainda considerar que o nosso sprawl tanto verticalizou suavemente áreas centrais, resultando em subúrbios de torres e sobrados, quanto áreas periféricas: parte do pleito que aparece nos parágrafos do artigo, ainda que indiretamente, ao nos voltarmos para a “cidade que importa”, já tem sido atendido. Tanto é verdade na problemática Raposo, quanto em tantos outros eixos e polos espalhados pela RMSP (Região Metropolitana de São Paulo).

As críticas predominantes (às quais o artigo, infelizmente, faz coro, ainda que de maneira mais polida e qualificada) continuam reforçando uma engenharia reacionária, com pouco letramento urbanístico e geográfico, e, sobretudo, o capital de porções minúsculas da cidade concreta, que atravessa mais de 20 municípios.

Legenda: Quadro mostra maior participação do transporte individual em detrimento do coletivo. A deprimente carrolatria se destaca em principalmente duas das sub-regiões (grifadas por mim em vermelho) da RMSP. A capital, chamada de “Sub-região Centro”, é um pouco menos pior. Fonte: relatório-síntese da Pesquisa Origem e Destino 2023, p. 27

Quando o autor argumenta que “deveríamos estar atingindo, ao menos, cerca de 60% no transporte coletivo”, ou seja, cerca de 12% a mais de participação modal a favor do transporte coletivo (considerando toda a RMSP) ou cerca de 5% a mais (considerando apenas a capital), o número de referência (60%) parece tirado do além. E, de novo, Tupinambá expõe uma comparação abstrata e pouco territorializada, que surfa no simbólico, como a imagem da Paris da expulsão e do arrasa-quarteirão, negando a diversidade da paisagem e a vastidão dos subúrbios de Ilha de França.

Às pessoas desavisadas, convém salientar que a Ilha de França, na qual está Paris e seus satélites, para ficarmos num dos principais núcleos econômicos europeus, é servida até por trens de alta velocidade. Fato este que contrasta com uma discussão apequenada, que afunda em populismos com pedágios e sobrados, e não dá conta dessa complexidade. Funciona quando o interlocutor é raso. Não funciona comigo.

Legenda: Infográfico com os principais números da região de Paris, no qual podemos identificar a presença de 10 grandes estações, sendo que os trens de alta velocidade contam com 7 estações e capilaridade invejável, verificável no mapa presente na porção inferior da imagem. Clique para abri-la e ampliá-la. Fonte: Paris Region Facts & Figures 2025, p. 7

Não temos um movimento intelectual hoje capaz de fazer uma ponte razoável com os tais bons exemplos:

  • Primeiro, seria passível de crítica, pois a França teria mais peso e poderia ser vista como potência colonial — isso num país que ainda tem poder ultramarino, e para ficar num único nome europeu;
  • Segundo, exigiria décadas de produção acadêmica desafiando linhas e nomes consolidados. Ciência é vaidosa;
  • Terceiro, duvido muito que favoreceria o tipo de chorume que continua minando;
  • Quarto, mesmo no caso da China, que talvez não suscitasse críticas em torno do colonialismo, não temos visto esforços realmente sólidos nem mesmo para escoamento de grãos;
  • Quinto, fora da dimensão acadêmica, tudo isso é, também, cultura. Nada impede a importação de material audiovisual contra-hegemônico, inclusive, nada impede tal fomento hoje, mas… de novo, será que as películas mostrariam aquilo que os discursos insistem em rotular como realidade?

Enfim, é difícil não pensar que os tais “números” não sejam meros reféns a serviço de agendas contraditórias.

Finalmente, com quase meio século de Cia. do Metropolitano, acho que o autor deveria reconhecer que foram muitos os fracassos: não é como se todas as cercanias das linhas fossem exatamente modelo. Na verdade, poderíamos disputar que, mesmo algumas com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) elevado e m² caro, apresentam sérios problemas de urbanidade. Metrô não é bala de prata e paisagens convenientemente negadas não desaparecem ou se transformam como num passe de mágica. A ideia de “imobiliarismo”, tal como proposta, cria uma blindagem dissociativa bastante comum, blindando centenas de milhares de pessoas e seus modos de vida questionáveis.


Colaborações: Lucian De Paula, por fomentar a discussão inicial



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