Construtora anuncia plano para o Tatuapé e moradores culpam prefeitura

Por Caio César | 29/05/2016 | 8 min.

Legenda: Rua Platina cortando a Praça Cel. Sandoval de Figueiredo
Por algum motivo, o público atingido por um anúincio da empresa Porte criticou o poder público, sem relação com a iniciativa, que é totalmente privada e fez questionamentos sobre não ter sido consultado, além de ter demonstrado ceticismo e preocupação com o fortalecimento do caráter misto do bairro ao longo do eixo. Entenda

Índice


Contextualização

O Tatuapé é a região mais cara da Zona Leste da capital paulista. Sua importância tem crescido a medida que o zoneamento, muito permissivo, facilitou o surgimento de um polo gastronômico, boêmio e comercial, cuja força se soma aos eixos rodoviários e metroferroviários da região, com destaque para as avenidas Radial Leste e Salim Farah Maluf, bem como para o corredor de alta capacidade formado pelas linhas 3-Vermelha da Companhia do Metropolitano de São Paulo, 11-Coral e 12-Safira da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos.

Algo que chamou a atenção recentemente, foi o anúncio feito em 07/05/2016 de um “polo urbanístico” denominado “Eixo Platina”, ocorrido por meio da página da Porte Engenharia no Facebook, uma construtora e incorporadora local. Por algum motivo, o público atingido pelo anúncio (i) criticou o poder público, sem relação com a iniciativa, que é totalmente privada; (ii) questionou sobre não ter sido consultado; (iii) além de ter demonstrado ceticismo e; (iv) preocupação com o fortalecimento do caráter misto do bairro ao longo do eixo. Semanas depois, em 23/05/2016, um vídeo foi publicado no YouTube da Porte.

Atualização (14/07/2016): o vídeo citado no parágrafo anterior foi excluído, em seu lugar, a construtora publicou um novo vídeo, porém sem grandes mudanças.

Legenda: Vídeo de instigação (teaser) publicado pela construtora em seu canal no YouTube. É possível identificar que o eixo nada mais é do que um conjunto de empreendimentos, num esforço muito mais mercadológico do que governamental

Abaixo cinco comentários da publicação da construtora no Facebook, todos excelentes para exemplificar o tipo de confusão que motivou a escrita do presente artigo:

Trouxas quem acreditar, jogada politica tacanha de quem esta acostumado a enganar o paulistanos a exemplo da ciclovia…No Rio a Rosinha quando perfeita fez propaganda da nova Av. Brasil, só que lá o descaradamento foi além, marcou a inauguração, lógico, não saiu do papel…..

Sustentavel????? Paralela com a Radial Leste ???? Como ?????Sao Paulo ta implodida!!!!!!!Nao consigo entender um projeto desses ????

Putz já tem até maquete e ninguém me aviso de nada então acho que já tá decidido né?

Lixoooooo o governo e a prefeitura deve investir em finalizar obras como as linhas de metrô prata e ouro onde as obras foram embargadas e nao começar novas obras, cidade sendo comandada por gente burra…

Kkkk a época petralha e nazistas de repetir uma mentira várias vezes para que vire uma verdade acabou! Vendedores de ilusão!

Se o eixo Platina é tão importante no bairro, deveria estar mais conservado e não com lixo e calçadas quebradas.

Trágico e/ou cômico, mas ilustra muito bem a dificuldade de falarmos de cidade e de discutirmos qualquer tentativa de transformação do espaço urbano, seja ela mais ou menos estruturante, seja ela fortemente ligada à iniciativa privada ou não.

Como mencionado, a região do Tatuapé, é marcada pelo uso misto ao longo do território dos bairros, característica esta totalmente amparada pelo zoneamento. É possível encontrar, sem grande esforço, moradias, comércios e serviços num raio de 1 km, tanto no Tatuapé baixo, cortado pela Av. Celso Garcia, quanto no Tatuapé alto, margeado pela Av. Radial Leste e também conhecido pelo nome de Vila Gomes Cardim.

E justamente na Vila Gomes Cardim o tal plano se descortina, buscando dar novo aproveitamento para terrenos paralelos à Radial Leste. O plano da construtora é relativamente simples de compreender: trata-se de uma espécie de eixo virtual, formado por um conjunto de empreendimentos de uso comercial, empresarial e misto, denominado Eixo Platina (provavelmente em alusão à Rua Platina). Abaixo cito um parágrafo que fala do eixo, com as palavras e termos da construtora, extraído da página de um de seus empreendimentos:

O Eixo Platina é um dos maiores projetos de desenvolvimento urbano, humano e sustentável da cidade de São Paulo. Localizado em uma faixa paralela a Av. Radial Leste, entre as estações Carrão e Belém do metrô, nasce embasado no conceito de uma grande transformação urbanística, criando uma região autossustentável e fortalecendo o Tatuapé como a capital da Região Leste.

Não pretendo entrar no mérito da aposta da Porte em termos de investimento e atitude junto ao mercado imobiliário, mas sim mostrar mais um episódio das dificuldades na discussão daquilo que se percebe como cidade, mesmo quando a iniciativa privada está fortemente envolvida. Perceba que a construtora fala no fortalecimento do Tatuapé como capital da Região Leste, ora, é uma pretensão que tem total relação com nossos artigos que discutem a multi-centralidade de São Paulo (vide aqui e aqui) e, ao usar o termo Região Leste, é possível entender que a projeção de importância é tamanha, que avança para além da Zona Leste, chegando até as cidades do Alto Tietê, bem como Guarulhos, ou seja, tem uma dimensão metropolitana.


Desejo de congelamento do bairro em prol do automóvel

O uso misto, a verticalização residencial e o fortalecimento do comércio, sobretudo de bares e restaurantes, somado à cultura de uso irracional e frequente do automóvel, tem como consequência o aumento no tráfego de veículos e de retenções no tráfego local, contudo, inibir a construção de novos empreendimentos não remedia a situação, é preciso atacar a questão da mobilidade a partir do desestímulo do uso do automóvel, principalmente pelos extratos com renda mais elevada. Desfilar com um SUV no Tatuapé precisa ser visto não com prestígio, mas como uma atitude nociva.

Legenda: Rua Emília Marengo, com uma fila automóveis formada num dos sentidos. É possível estacionar nos dois lados e não há priorização para osônibus, além disso, a ocupação das calçadas pelos bares nem sempre respeita quem está a pé

Uma sugestão é para que a questão seja tratada a partir dos seguintes pilares:

  1. Gargalos do sistema de média capacidade (SPTrans);
  2. Gargalos do sistema de alta capacidade (CPTM e Metrô);
  3. Desestímulos à caminhada e ao ciclismo.

Considerando que é possível criar linhas circulares com ônibus elétricos (como os novos modelos com bateria, que dispensam uma rede aérea), remover vagas de estacionamento para alargar calçadas e dotá-las de mobiliário (como totens informativos, bancos e floreiras), além de facilitar o uso da bicicleta pela instalação de ciclovias ou pelo menos ciclorrotas, resolve-se o pilar 3 totalmente e o pilar 1 parcialmente, além dos ônibus elétricos, um VLT também poderia ser considerado, conforme já opinamos no passado. Para buscar solucionar o pilar 1 totalmente, bem como o pilar 2, é preciso considerar as dificuldades na municipalidade na implantação do Corredor Radial Leste 1/2/Aricanduva, bem como a morosidade nas obras de modernização do Metrô e da CPTM, que como agravante não devem ampliar a conectividade do Tatuapé com outras centralidades, apenas melhorar (e não substancialmente) a conectividade atual, a respeito do tema, vale ler nosso artigo intitulado “Breve avaliação das linhas 3, 11 e 12”.


Repúdio ao uso misto

Bairros com perfil misto são a bola da vez, uma tendência dos tempos atuais, no entanto, nem todas as pessoas os aceitam, alimentando a ideia de que o uso misto é sinônimo de falta de tranquilidade. O que poucos parecem considerar, é que um perfil misto de ocupação e uso do solo, tem como benefícios:

É o uso misto que dá força à expressão “fazer tudo a pé”, é também ele que coloca mais pessoas nas ruas e reduz a sensação de insegurança. O modelo de condomínios-clube disseminado pela região não combina com o uso misto, mas o maior entrave não são os parques e equipamentos privados incluídos no modelo, mas cultura de enclausuramento que ele provoca, é ela que não possui compatibilidade alguma com o uso misto, aliás, é praticamente incompatível com uma cidade para pessoas, já que induz a fragmentação e segregação urbanas.

Legenda: Edifícios residenciais voltados às classes média-alta e alta na região do Jardim Anália Franco, nas proximidades do Parque Ceret e Rua Eleonora Cintra

Ironicamente, a Porte tem sua parcela de culpa pelos empreendimentos residenciais que lançou, sobretudo no vizinho Jardim Anália Franco, portanto, a reação daquelas pessoas tem relação direta com várias das práticas do mercado imobiliário na região.


Confusão entre público e privado

Talvez o aspecto mais curioso, visto que a livre iniciativa, tão alardeada como uma panaceia pela nova onda de liberais-conservadores, foi criticada, na verdade, ela mal foi percebida, mesmo sendo relativamente fácil de identificar que não havia no anúncio uma relação entre o eixo e as operações urbanas da municipalidade, que diga-se de passagem, sempre envolvem o setor privado.

Henry Acselrad fala em seu trabalho “Desregulamentação, contradições espaciais e sustentabilidade urbana” sobre a perda do papel intervencionista da figura do estado com a transição para uma economia baseada na acumulação flexível de capital; o enfraquecimento do papel planejador tem relação direta com o surgimento e disseminação de modelos urbanísticos insustentáveis, excessivamente baseados no automóvel e muitas vezes fortalecedores dos piores aspectos de uma sociedade classista e extremamente desigual, tal como é a sociedade brasileira. Aparentemente, a propaganda e a narrativa midiática dificultam a compreensão do fenômeno, principalmente nas cidades. Uma citação oportuna pode ser conferida abaixo:

A atual crise urbana é também uma crise de constituição de um novo modo de regulação para as cidades — modo este que se quer compatível com as dinâmicas de um capitalismo flexível. Esta crise tem-se alimentado das novas contradições espaciais verificadas na cidade, seja por via de processos infra-políticos (da chamada “violência urbana”), seja por via de processos políticos — aqueles pelos quais se vem crescentemente denunciando e resistindo à dualização funcional da cidade entre áreas ricas e relativamente mais protegidas e áreas pobres submetidas a todo tipo de risco urbano. A busca de cidades “sustentáveis”, inscritas no “metabolismo de fluxos e ciclos de matéria-energia, simbiótica e holística” remete, por certo, à pretensão de se promover uma conexão gestionária do que é, antes de tudo, fratura política.


Conclusão

Ninguém disse que falar de cidades seria fácil… como vemos aqui, mesmo quando a iniciativa tem um peso muito maior por parte do mercado, o desafio permanece, por outro lado, é entusiasmante notar as transformações que continuam ocorrendo e sendo propostas, principalmente quando reforçam tendências que buscamos confirmar, discutir e, como não poderia deixar de ser, relacionar com a temática da mobilidade urbana.




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