Por que a ideia de Doria para a EMTU pode ser um tiro no pé?

Por Caio César | 24/12/2016 | 7 min.

Legenda: Ônibus da linha 499 da EMTU, que liga o Terminal Cecap, na periferia de Guarulhos, à Estação Dom Bosco da CPTM, na periferia de São Paulo
Desespero, não há outra maneira de definir a proposta da equipe de João Doria (PSDB), prefeito recém-eleito da capital paulista, que assumirá o governo municipal em 2017: encurtar as linhas de ônibus da EMTU, de forma a forçar um aumento no uso dos ônibus da SPTrans

Índice


Introdução

Encurtar linhas com o objetivo de racionalizar o transporte por ônibus é uma ação relativamente comum na capital e até mesmo em alguns pontos da metrópole, contudo, esforços em prol da racionalização costumam ser acompanhados de três elementos:

  1. Estudos/pareceres técnicos;
  2. Políticas tarifárias e;
  3. Investimentos em terminais de integração e corredores exclusivos.

Até o momento, não há nenhum estudo público disponível para consulta, muito diferente das audiências públicas e planos da EMTU, que geralmente podem ser consultados, sendo possível até desenterrar planos jurássicos.


O tal do populismo

Doria e sua equipe não estão buscando chegar a um acordo com a EMTU por mero acaso. Acontece que o populismo, como tudo na vida, tem um preço: como o novo prefeito e sua equipe estão buscando não reajustar a tarifa — promessa de campanha que parece ter sido feita no melhor estilo “a gente vê depois como faz”— , temendo manifestações e desgaste político, a ideia é aumentar a arrecadação tarifária da SPTrans forçando o usuário da EMTU a se transferir, pagando por isso, é claro.

Quem se importa com a EMTU, não é mesmo? Durante as manifestações contra o ajuste tarifário em 2013, ninguém parecia se importar, assim, passar a tesoura nas linhas da EMTU é uma das soluções levantadas para manter a tarifa congelada, ao passo que a dor de cabeça com a população insatisfeita deverá ser muito menor, principalmente pela maior fragmentação, já que estamos falando de um serviço intermunicipal, com um caráter suburbano muito maior, que atende várias cidades que mal aparecem nos jornais de maior abrangência, cujas redações ficam na capital paulista.

Em seu blog, Adamo Bazani cita a possível base para a problemática ideia, que também dialoga com aquele fatídico 2013:

De acordo com o estudo da Câmara Municipal, durante a CPI dos Transportes em 2013, a transferência de passageiros das linhas metropolitanas para as municipais poderia aumentar em R$ 400 milhões a receita mensal do sistema da capital.

De 571 linhas da EMTU na Grande São Paulo, 376 entram na capital paulista.

Então, resumindo: temos pelo menos 376 linhas na mira, com R$ 400 milhões em jogo. Ah, e caso você esteja se perguntando, a EMTU já tirou o corpo fora da história toda, dizendo que não foi sequer consultada:

A Empresa Metropolitano de Transportes Urbanos (EMTU) informou, em nota, que “desconhece qualquer estudo no sentido de reorganizar o sistema de arrecadação do transporte intermunicipal por ônibus” tanto na capital quantos nos outros 38 municípios da Grande São Paulo. “A racionalização do sistema de transporte sobre pneus tem sido objetivo permanente da EMTU. Um plano bem executado reduz custos e pode, até, aumentar a velocidade comercial dos veículos, reduzindo assim o dispêndio dos usuários”, afirma a estatal controlada pelo governo Geraldo Alckmin (PSDB).


Cadê a infraestrutura?

Um outro problema é que, em algum momento, a questão da infraestrutura necessária para a integração vai precisar ser colocada. Se a prefeitura está desesperada para cobrir a receita perdida com um possível congelamento tarifário, seria inocência achar que ela vai mover uma palha para fazer terminais, não vai… há risco de que os terminais sejam meros pontos na calçada, oferecendo poucas informações e quase nenhum conforto para o passageiro.

Como sempre, tudo que fica na periferia, recebe muito menos atenção do que deveria, vide os pontos de ônibus na frente da antiga Estação São Miguel Paulista da Linha 12-Safira (Brás-Calmon Viana) da CPTM, que deveriam ter desaparecido, sendo substituídos por um pequeno terminal, atendendo linhas municipais do Alto Tietê, sobretudo da periferia de Guarulhos, para as quais São Miguel Paulista, um subcentro, é simplesmente o “centro da cidade” mais próximo.

Legenda: Intervenção proposta para a Estação São Miguel Paulista, documentada no Plano Diretor de Inserção Urbana da CPTM (Fupam, 2010). Grifo meu

Legenda: Detalhe dos pontos de ônibus na região da Estação São Miguel Paulista, linhas intermunicipais terminam aí. Nível de conforto próximo de zero

Diferentemente do caso acima, no passado, quando a prefeitura e o governo estadual decidiram que era necessário reorganizar as linhas do Grande ABC, foi preciso um grande terminal de ônibus, além de uma política tarifária para evitar o pagamento de duas tarifas. De qual terminal estou falando? Do Sacomã, inaugurado em março de 2007.

Legenda: Uma pequena parte do Terminal Sacomã, vista a partir da plataforma do Expresso Tiradentes

Trata-se de um terminal intermodal, ocupando uma área de 12.600 m², com três pisos, unindo ônibus municipais da SPTrans, ônibus intermunicipais da EMTU e plataformas do BRT Expresso Tiradentes, também da SPTrans, além de uma passarela para conexão direta com a Estação Sacomã da Linha 2-Verde do Metrô (atualmente Vila Prudente-Vila Madalena), inaugurada em janeiro de 2010. Ufa! Por sinal, a presença do Expresso Tiradentes é fundamental no Sacomã, visto que as linhas do Grande ABC até então seguiam até o Parque Dom Pedro II.


Sem política tarifária

Diferentemente do caso do Terminal Sacomã, comentado brevemente acima, Doria e sua equipe não estão prevendo uma política tarifária amigável, se é que estão prevendo algo minimamente realista.

Diferentemente da SPTrans, a EMTU cobra por distância percorrida, mas encurtar linhas não garante uma tarifa de, digamos, R$ 1. Analisando o relatório de linhas e tarifas datado de 09/01/2016 (o mais recente no momento da produção do artigo), foi possível verificar que a linha mais barata da EMTU é a 317, que liga o Centro de Francisco Morato ao bairro Parque Paulista, em Franco da Rocha, apresentando um tempo de percurso estimado em apenas 13 minutos, mas mesmo assim possuindo uma tarifa de R$ 2,90.

Ora, a menos que a futura gestão municipal faça milagres, vai ser muito difícil crer que os passageiros não pagarão ainda mais do que já pagam hoje em linhas regulares da EMTU, cujo valor da tarifa rapidamente supera os R$ 4,50. Se assumirmos que a tarifa mínima possível na EMTU é R$ 2,90, então significa que o passageiro vai pagar R$ 6,70 para fazer todo o trajeto que fazia antes de ter sua linha encurtada, caso opte por continuá-lo nos ônibus da SPTrans. Para se ter uma ideia, apenas linhas longas chegam a custar mais de R$ 6, como é o caso das linhas 038 e 144, que possuem tarifa de R$ 6,95 e ligam o Terminal Estudantes, em Mogi das Cruzes, às estações Armênia e Brás, respectivamente.

Mas ainda há outro porém: no exemplo acima, eu peguei uma cidade atendida pelo sistema metroferroviário. Nem todos os habitantes possuem a mesma sorte, como é o caso dos moradores de Cajamar, Arujá e outras cidades. Se pegarmos como exemplo a linha 075, cuja tarifa é R$ 4,25 até São Miguel Paulista (possível futuro destino da linha, caso encurtada) e R$ 6,40 até a Estação Brás (dentro da premissa para ser encurtada), vemos que:

  • A tarifa não é reduzida a R$ 2,90 para ir da periferia de Arujá até a periferia de São Paulo (neste caso, novamente em condição de subcentro);]{#dd3f}
  • Em diversos pontos, a linha corre paralela ao leito da Linha 12-Safira da CPTM, que comparada a qualquer ônibus da SPTrans, é muito mais expressa. O passageiro pode desembarcar e acessar estações como Jardim Romano e Itaim Paulista, pagando mais R$ 2,12 para usar o Trem Metropolitano, o que significa que. nas condições atuais, o valor fica praticamente o mesmo da tarifa cheia da linha até a Estação Brás (R$ 6,37 ante R$ 6,40).]{#ab8d}

Por tudo isso é muito, mas muito difícil mesmo, de imaginar que algum passageiro vai sair ganhando com a mudança aventada, para não dizer que os passageiros podem migrar para o sistema de trilhos, visto que o BOM permite integração tarifária, sendo aceito em todas as linhas do sistema metroferroviário.


Conclusão

Já recebemos reclamações em nossa fanpage por questionarmos os futuros passos do governo municipal, mas é impossível ficar calado diante dos anúncios que estão sendo feitos. Reitero que racionalizar linhas pode ser positivo, mas é preciso que dois componentes não sejam deixados de lado: tarifa e infraestrutura.

Espero ter deixado claro que, com a proposta que foi colocada diante da imprensa, visando apenas elevar a arrecadação da SPTrans para cumprir uma promessa eleitoral demagógica, fica muito difícil de acreditar que interferir na EMTU produzirá resultados positivos para os passageiros. Será que não chegou a hora de debater, de forma ampla e transparente, com toda a sociedade, o financiamento do sistema de transporte público, seja para expandi-lo e melhorá-lo, seja para simplesmente custeá-lo?




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