Trens-bala podem facilitar o acesso à moradia?

Por Caio César | 02/02/2019 | 8 min.

Legenda: Um trem shinkansen da série N700 em alta velocidade na linha Tokaido com o Monte Fuji ao fundo. Autor: tansaisuketti. Original: Wikimedia Commons. Licença: Creative Commons Attribution-ShareAlike 3.0 Unported
Estudo da UCLA identificou resultados positivos em relação aos trens de alta velocidade japoneses. Que tal trazermos o debate para São Paulo?

Índice


Recentemente o CityLab abordou algumas questões interessantes envolvendo o trem de alta velocidade que está sendo implantado na Califórnia, costa oeste dos Estados Unidos e, particularmente, uma delas se destacou a meu ver: a possibilidade de reduzir os custos habitacionais ao colocar um trem-bala em funcionamento. Antes de tratar do casamento entre trens rápidos e moradia mais acessível, faz-se necessário contextualizar brevemente a atual situação dos trens regionais, comumemente chamados de trens intercidades pela STM (Secretaria dos Transportes Metropolitanos) e pela CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitano).


De projetos que poderiam ser aprimorados para o anacronismo desesperador

São Paulo tem ensaiado o retorno do transporte regional sobre trilhos há quase dez anos, ensaio este que começou a ficar ainda mais preocupante quando o governo estadual exibiu sinais de que estava cedendo ao lobby das concessionárias de carga, vislumbrando a possibilidade de implantar um sistema de no máximo média velocidade e tempos de viagem poucos competitivos quando comparados com as modernas rodovias que ligam a principal metrópole ao interior e litoral do estado, nomeadamente os sistemas Anhanguera-Bandeirantes e Anchieta-Imigrantes. As concessionárias, dentro dos atuais contratos, são impelidas a apoiar o transporte de passageiros, daí o súbito interesse, inédito desde a privatização da Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Se a modelagem anterior já merecia questionamentos por considerar adotar trens de média velocidade, ainda que em traçados muitas vezes novos, as promessas ainda nebulosas que ganharam força nas últimas eleições deveriam ser rechaçadas completamente, ou pelo menos, serem confrontadas como uma piada de mau gosto. O governo deveria priorizar a implantação de trens mais rápidos e, a exemplo do Japão, elevar os pedágios para garantir a competitividade dos trens, pelo menos — comentamos sobre como o pedágio é um instrumento importante quando abordamos a comparação entre Reino Unido e Japão, feita pelo Financial Times. Se havia a intenção de construir infraestrutura nova, aquele era mesmo o melhor caminho, bastando apenas aprimorar o projeto para garantir a adoção de trens de alta velocidade.

Saiba mais: confira maiores detalhes sobre os projetos de trens regionais já modelados para as Campinas (parte 1 e parte 2), Sorocaba e Santos.


Os intrigantes resultados obtidos pelos japoneses

Como apontado pelo CityLab, pesquisadores da UCLA (Universidade da Califórnia em Los Angeles) observaram que a presença do Shinkansen (nome pelo qual também é chamada a rede japonesa de trens de alta velocidade) pode ter contribuído para viabilizar habitação acessível para além dos subúrbios metropolitanos, ou seja, nos exúrbios, permitindo que trabalhadores de Tóquio preservassem sua fonte de renda (baixa renda, no caso) e mantivessem um tempo de deslocamento aceitável, competitivo em relação à periferia atendida pelos trens suburbanos. Para facilitar a apropriação do que a ligação entre Tóquio e Osaka representa, tenha em mente que os trens-bala da Linha Tokaido percorrem uma distância de 552 km em 2h22.

Legenda: Mapa da ligação de alta velocidade entre Tóquio e Osaka. Autor: Hisagi. Original: Wikimedia Commons. Licença: Creative Commons Attribution-ShareAlike 3.0 Unported

Falar em um deslocamento de quase 2h30 pode parecer muito, porém não é raro encontrar pessoas em São Paulo que precisam de 2 horas ou mais só para fazer o trajeto casa-trabalho. A BBC Brasil publicou em 14/01/2019 uma excelente reportagem sobre pessoas que gastam ainda mais tempo, intitulada “Transporte público em SP: Como é a rotina dos trabalhadores que passam quase um terço do dia dentro de ônibus, metrô ou trem” e, como é de se imaginar, nenhuma delas percorre 550 km. Ainda pensando na realidade brasileira, mais 40 km e atingimos os 590 km, exatamente a distância que separa as metrópoles de Belo Horizonte e São Paulo por rodovia.

O professor Jerry Nickelsburg da UCLA aponta que o Shinkansen significou uma expansão do tamanho da cidade, com a urbanização se movendo para fora. Observou-se elevação nos preços das áreas próximas das estações, no entanto, o estudo da UCLA também revelou que as prefeituras atendidas pelos velozes trens eram mais acessíveis do que seriam sem o transporte ferroviário de alta velocidade. Pensar por essa ótica pode ser preocupante, já que parece induzir o chamado sprawling (fenômeno da urbanização difusa, em português), contudo, São Paulo já recebe trabalhadores do interior diariamente, tanto que a Emplasa tem falado há anos na existência de uma Macrometrópole, formada pelo conjunto de regiões metropolitanas paulistas, ou seja, já há uma certa difusão da urbanização e ela não está orbitando em torno de sistemas ferroviários de alta velocidade. Quando mencionei a na seção anterior a importância de implantar trens regionais competitivos em comparação com rodovias como Anhanguera e Bandeirantes, foi justamente por compreender que há uma dinâmica consolidada.

Saiba mais: para quem quiser ir direto na fonte, o paper da UCLA tem 24 páginas e pode ser lido aqui (em inglês).

Ainda que a preocupação com o sprawl seja extremamente válida e compreensível, Nickelsburg observou um estímulo à descentralização no caso japonês. Para o acadêmico, a descentralização foi justamente o que contribuiu para reduzir o preço das habitações. Joe Nation, professor de políticas públicas em Stanford, também foi entrevistado pelo CityLab e, ao contrário de Nickelsburg, acredita em sistemas regionais convencionais, no entanto, parte de sua argumentação está ligada à densidade populacional, muito maior nas cidades japonesas do que nas cidades californianas, contudo, São Paulo apresenta uma densidade maior, então talvez não faça sentido defender sistemas convencionais, até porque, justamente pela densidade maior e uso mais intensivo do solo, temos menos espaço para construir sem desapropriar, o que também nos coloca numa situação bem diferente daquela observada na Califórnia.

Para que fique claro o contexto de implantação da ligação rápida entre Tóquio e Osaka, cito abaixo um trecho da tese, que tomei a liberdade de traduzir livremente (página 5):

O objetivo da Linha Tokaido era aliviar a pressão sobre uma rede de transporte ferroviário superlotada entre as três maiores cidades japonesas, Tóquio, Osaka e Nagoia. Ele também foi visto como uma válvula de alívio para condições de superlotação em Tóquio, uma vez que reduziu o custo de deslocamento a partir de vilas e cidades periféricas. A Linha Tokaido tem sido citada como uma das ferrovias de alta velocidade mais bem-sucedidas por seu papel na redução do congestionamento e seu papel na geração de crescimento econômico.

Apesar de a pesquisa da universidade californiana ter envolvido a análise de dados demográficos e econômicos com horizonte de 55 anos de prefeituras japonesas, observando ainda o contraste entre os períodos de crescimento e estagnação (conforme página 4, é preciso destacar que a conclusão não é tão otimista quanto o CityLab deu a entender. É por isso que optei por falar em “resultados intrigantes”, não em “solução”, “receita para o sucesso”, “resposta para o problema” etc. A próxima e última seção esclarece por quais motivos é preciso ter cautela.


Não existe receita milagrosa

Não entrarei no mérito de detalhar ou discutir os modelos matemáticos teóricos adotados, até porque fugiria do escopo deste artigo, porém acho crucial citar um parágrafo da conclusão do estudo (página 11; grifos meus):

Essa ferrovia de alta velocidade aumenta a conveniência de viver em subúrbios periféricos de cidades lotadas e caras. O que não ficou claro até agora é se a ferrovia de alta velocidade pode ou não servir como uma das soluções para a falta de moradias acessíveis. Se a ferrovia de alta velocidade induzir um rápido crescimento econômico ao longo da linha, é possível que a moradia nas proximidades seja mais cara do que barata. Neste estudo, examinamos a experiência no Japão e descobrimos que, ao longo de um período de cinquenta e cinco anos, o Shinkansen diminuiu os custos da terra e aliviou parte da pressão sobre os preços das casas nas grandes cidades.

Ou seja, o caso japonês exibiu resultados positivos considerando dados coletados ao longo de 55 anos, porém, fica claro que replicar a proeza em outros lugares exige uma investigação mais detalhada, pois é preciso se atentar para o tipo de crescimento econômico desejado e possível ao longo da ferrovia de alta velocidade. Mais uma vez surgem indícios de como a infraestrutura sozinha não faz milagres. É preciso um processo integrado de planejamento, intersetorial, transparente e que verdadeiramente cumpra seus objetivos.

Sabe-se que o problema de São Paulo não é falta de estoque de unidades. Há muitas unidades ociosas, que estão desabitadas por serem tratadas como ativos passíveis de especulação financeira. A prefeitura da capital deveria desestimular os estoques de unidades vazias, já que estes prejudicam a vida de milhares de pessoas e reduzem o dinamismo dos bairros, além de prejudicarem os sistemas de transporte coletivo devido à superlotação e inchaço das periferias, no entanto, não é o que tem acontecido.

Se os instrumentos do Estatuto da Cidade, como o IPTU progressivo no tempo e o direito de preempção não forem bem empregados por municípios como São Paulo, Campinas, Santos, Guarulhos, Santo André, São Bernardo e Mogi das Cruzes, para citar alguns dos maiores da Macrometrópole, é difícil acreditar num caminho diferente daquele que tem sido trilhado até então, com péssimos resultados.




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