Precaridade urbana não é questão de disposição

Por Caio César | 14/08/2021 | 10 min.

Legenda: Região do Jardim Vassouras, Francisco Morato, Região Metropolitana de São Paulo. Foto tirada a partir da Av. Paulo Brossard em 2018
A noção de cidade compacta, ainda que utópica, norteia práticas importante e não deveria ser rejeitada e substituída por outra utopia: uma fantasia laissez faire que normaliza loteamentos de péssima qualidade e trata problemas estruturais como escolhas individuais

Em 23 de julho, discutimos no grupo do COMMU a respeito do artigo “O ideal da cidade compacta ainda faz sentido?”, publicado pelo site Caos Planejado em 25/02/2021. Participaram da discussão Pedro Geaquinto, Lucian De Paula e este que vos escreve, Caio César.

Geaquinto iniciou a discussão questionando as conclusões de André Sette, autor do artigo. Para Sette, o planejamento urbano muitas vezes revela posturas contrárias ao urbano, o que é paradoxal:

A história do planejamento urbano é repleta de teorias que são, paradoxalmente, antiurbanas. Apesar de seus méritos, a cidade compacta parece ter entrado para o rol de propostas que visam disciplinar nossas cidades. O medo de uma expansão descontrolada não é motivo para atuar contra vetores de crescimento que podem ser benignos. Talvez o maior desafio do planejamento seja entender até onde vai o trabalho do urbanista, e até onde a cidade deve ser deixada a cargo de seus moradores.

Reunindo nossas visões, entendemos que a cidade compacta é pró-urbano, estabelecendo um contraponto a um longo histórico de posturas antiurbanas. De fato, a história recente das cidades brasileiras é marcada por abordagens fortemente rodoviaristas, como aquelas que deram origem a Brasília, DF e Palmas, TO, para elencar dois exemplos que não parecem ser suficientemente criticados (parece existir uma certa proteção em torno dos idealizadores), para não citar expansões urbanas como a ocorrida na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro ou mesmo operações urbanas malufistas, como a da Faria Lima, em São Paulo.

Em linhas gerais, nossos pilares para uma cidade compacta são: diversidade e proximidade. Em outras palavras, entendemos que nossa postura não é tão dirigista, uma vez que não insiste na setorização da maioria das atividades e na orientação para o automóvel, o que significa dizer que (i) uma mesma área da cidade poderia contar com muitas atividades diferentes, reduzindo a necessidade de deslocamentos; (ii) a ideia de precisar de espaço para o automóvel (seja por requisito legal ou por postura mercadológica) seria enfraquecida; (iii) as condições de uso e ocupação seriam ótimas para o transporte coletivo, tornando seus custos mais racionais, o que permite a modelagem de sistemas mais caros e sofisticados (e com maior potencial de retorno no longo prazo); (iv) cria condições para atração de pessoas e negócios, produzindo sinergias, facilitando o desenvolvendo endógeno e proporcionando condições para aumento da demanda por moradia naquela área, o que favorece a verticalização e o adensamento.

O flerte com uma cidade “deszoneada”, que nos parece importado dos Estados Unidos sem a devida tropicalização, simplesmente não faz tanto sentido em São Paulo. É evidente que somos uma cidade pouco racional, inclusive quando olhamos para o mercado, que não se dissocia do Estado e da sociedade, mas não apresentamos uma dicotomia rígida opondo subúrbio/não-cidade/não-lugar e centro urbano/cidade/lugar. A suspeita de falta de tropicalização, por exemplo, salta aos olhos no seguinte fragmento do artigo:

Outro caso notável é o de Portland, nos EUA. Como Seul, esta cidade também instituiu uma barreira de contenção nos anos 1970. O acompanhamento por satélite mostra que de fato houve uma ocupação dos terrenos vagos dentro da área urbanizada. No entanto, Angel mostra que o preenchimento dos vazios urbanos também ocorreu em Houston, uma cidade que não tem lei de zoneamento e não adota políticas de contenção. A diferença é que, em relação à renda média dos habitantes, uma casa em Houston é duas vezes mais barata do que em Portland.

É verdade que Portland, OR possui uma barreira de contenção, mas não é verdade que a barreira é imutável. Portland faz ajustes como parte de um processo de planejamento que constituiu uma das atmosferas urbanas mais agradáveis de toda a América Norte, com um sistema de mobilidade alicerçado em linhas de bondes modernos (também chamados de VLTs, Veículos Leves sobre Trilhos) que circulam em maior velocidade nos subúrbios e mais lentamente na região central, quando as condições urbanas permitem uma maior integração entre as pessoas e as infraestruturas. No outro extremo, é verdade que Houston, TX não tem zoneamento, mas isso, por si só, pouco significa quando se omite que Houston possui um complexo código de obras. Em comparação com Portland, o sistema de bondes de Houston não parece ter sido tão bem sucedido para estimular a caminhabilidade e o uso do transporte público.

Esse exemplo envolvendo Portland e Houston surge pouco antes de um apontamento em torno do mercado informal de moradia, cuja presença é inegável, principalmente considerando as cidades atendidas pela CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), que costumam ser objeto da maioria das discussões feitas por nós do COMMU. O que fica parecendo é que o autor vai construindo uma narrativa de que quanto menos regulação, melhor, algo que nos parece uma grande fantasia, porque inclusive distorce posturas mercadológicas, além de nunca vir acompanhada de uma defesa explícita das condições subumanas e péssimos indicadores socioeconômicos que acompanham tais aglomerados. Eis a citação:

O Ministério do Desenvolvimento Regional aponta que cerca de metade dos imóveis do país estão irregulares. Na prática, nossas cidades dependem de um mercado informal para oferecer moradia acessível. O parcelamento clandestino permite que famílias adquiram um lote barato e ergam sua casa aos poucos. É notável que estas pessoas consigam um lugar para morar sem ter acesso ao financiamento imobiliário. São contraídas apenas pequenas dívidas em lojas de material de construção, e a obra pode ser paralisada em períodos de dificuldade financeira. Imóveis construídos nestas condições também alimentam um amplo mercado de aluguel nas periferias do Brasil.

Sette salienta ainda que não se trata de uma oposição à cidade compacta, mas de um questionamento à sua viabilidade diante das desigualdades socioeconômicas e porque “sempre haverá pessoas dispostas a morar a dezenas de quilômetros do seu local de trabalho”. Bom, nós discordamos fortemente do autor.

O parcelamento clandestino não é um exemplo, isto porque ele é acessível, mas ao mesmo tempo não é. Explicamos: existem muitos custos embutidos em tais loteamentos, que se traduzem em brigas que duram décadas para que prefeituras (também pobres) consigam levar a infraestrutura que era de obrigação do loteador, que não fez para o terreno “caber no bolso” do comprador. Há ainda uma série de riscos jurídicos, que criam uma indústria da regularização fundiária, o que inclusive movimenta candidaturas tanto quanto o problema da infraestrutura; problemas de deseconomia de escala (que o autor parece admitir, mas numa lógica reversa); problemas ambientais, que aparentemente inexistem para o autor; problemas de insalubridade, sobretudo quando o relevo não é o mesmo de cidades estadunidenses (ou seja, plano) e a população constrói em encostas, se sujeitando a morrer soterrada.

Em suma, o parcelamento clandestino produz um mercado que é indesejável. E, assim como não se defende explicitamente as más condições destes, como já dissemos, os lugares produzidos informalmente raramente são citados nominalmente, quanto menos expostos por meio de fotografias.

Legenda: Fotografias de 2018 de bairros como Jardim Vassouras e Jardim Alegrias, em Francisco Morato. Clique para ampliar e navegar na galeria

Coloquemo-nos no lugar de um possível comprador: qual outra opção a não ser não ter outra escolha levaria alguém a adquirir um lote em condição fundiária duvidosa na periferia de Francisco Morato? Sejamos francos: não faz sentido falar em “disposição”! Disposição é quando nós acordamos e escolhemos se queremos pão com manteiga ou com geleia, disposição é quando uma família estruturada de classe média faz concessões para morar num imóvel maior, mas mais distante do trabalho.

Escolher entre morar no Parque 120 ou no Jardim Alegria não é questão de disposição. Essas pessoas não estão dispostas, simplesmente possuem escassez de opções e de dignidade humana. Então, sim, precisamos colocar que “reduzir o gasto com habitação” significa abrir mão da dignidade, reduzir a própria expectativa de vida, produzir um passivo ambiental, alimentar oligarquias que vivem da exploração da pobreza, contribuir com esquemas ilegais de uso e ocupação do solo, entre muitos outros problemas. É viável? Questionamos: é realmente mais viável do que buscar a produção de uma cidade mais compacta?

Realisticamente, cidades são heterogêneas. Obviamente, uma cidade uniformemente compacta não é viável, pois a cidade compacta é uma noção utópica que norteia um conjunto complexo de disputas, atores e políticas públicas. Busca-se uma produção, conversão, ampliação, adaptação desse modelo de cidade e, com ele, um modelo de cidadania.

Adicionalmente, a proposta de “assegurar espaço para as vias arteriais e para os espaços públicos”, além de o poder público dever “garantir a reserva dos terrenos por onde passarão as futuras estradas”, sem necessariamente abrir ruas e asfaltar a malha imediatamente, bastando uma “fiscalização periódica para evitar assentamentos informais”, proposta compartilhada por Sette ao citar outro autor, Shlomo Angel, é de extrema ingenuidade. Não nos fica claro se o autor tem experiência com prefeituras com baixa capacidade técnica e orçamentária ou mesmo quais relações o autor já desenvolveu com moradores de loteamentos de péssima qualidade, mas a proposta não dialoga com a realidade brasileira (ou seja, veio enlatada do exterior, sem tropicalização, sem ser confrontada com nossa realidade, sem passar por múltiplos interlocutores brasileiros).

Se o poder público tivesse tal capacidade, os loteamentos nem surgiriam em primeiro lugar. Se o poder público tivesse tal capacidade, o município do Rio de Janeiro não teria permitido o surgimento de múltiplos feudos favelizados e controlados por organizações criminosas paraestatais. E, para além do poder público, não basta só a pressão da ocupação orgânica, ainda é preciso considerar a genialidade do loteador, que pode traçar um arruamento muito ruim. A despeito do que Sette parece pensar, um loteamento clandestino em Francisco Morato não é comparável com planos como o Cedrà de Barcelona ou o Comissioners’ Plan de Manhattan.

Percebam o problema do argumento: primeiro, o autor fantasia um arcabouço legal libertino, depois, o autor trata a cidade compacta como algo que não pode ser perseguido, adotando um tom complacente para ocupações orgânicas subumanas, e, de repente, o autor salta para planos de ocupação do solo de locais estratégicos de cidades de países centrais do capitalismo. Posteriormente, Sette ainda fala de bondes, um tipo de transporte que, no Brasil, ficou muito associado a bairros centrais, vários deles ocupados pela burguesia dominante.

Loteamentos orientados por transporte leve sobre trilhos são uma mosca branca nas periferias brasileiras. Mesmo estabelecendo um recorte limitado à Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que possui 39 municípios, um dos poucos exemplos talvez seja o Bairro Jardim em Santo André, que contou com um bonde movido a motor de combustão interna por pouco tempo (ou seja, o bonde nem elétrico era), quando aquela área ainda pertencia ao município de São Bernardo. Outro exemplo talvez poderia ser o atendimento por bondes a Santo Amaro, quando aquela região ainda era um município e não parte da capital paulista.

O argumento de que a cidade compacta é pretexto para “estabelecer uma relação utópica entre ser humano e cidade”, induzindo “uma forma artificial, onde há pouco espaço para a experimentação” também não nos convence. Não existe cidade com forma não artificial. Quando falamos em uma ocupação orgânica, estamos falando numa produção artificial pouco ou nada planejada, baseada em necessidades imediatas e escassez de recursos e capacidades. Como ponderado anteriormente, a cidade compacta pode ser tranquilamente interpretada como uma utopia, não para ser interpretada como completamente inviável, mas sim como norteadora.

Uma cidade difusa não é necessariamente sinônimo de inovação, dinamismo e desenvolvimento em decorrência de sua frouxidão normativa, principalmente quando não passa de um subproduto de práticas do mercado formal de terras e edificações urbanas. No lugar de complacência, deveríamos admitir que boa parte do tecido da RMSP não é de boa qualidade.

Infelizmente, o artigo de Sette fracassou na condução do debate. O texto reitera a crítica à ideia de cidade compacta, vindo de um ator que já havia desacreditado na possibilidade de uma cidade policêntrica, mas nas entrelinhas, defende um modelo laissez faire (também utópico, ironicamente), que não é descrito, mas apenas subentendido como superior. E, como é típico desse tipo de defesa, trata problemas com impacto coletivo dentro da escala microeconômica, então, abrir mão da própria dignidade se torna uma questão de disposição, ou uma questão de manejo de um orçamento familiar que está aquém do ideal.


Colaborações: Pedro Geaquinto e Lucian De Paula



Se você ainda não acompanha o COMMU, curta agora mesmo nossa página no Facebook e siga nossa conta no Instagram. Veja também como ajudar o Coletivo voluntariamente.



comments powered by Disqus