Em São Paulo, o campo progressista ainda não despertou para a emergência climática. Entenda

Por Caio César | 14/08/2023 | 9 min.

Legenda: Contraste entre edifícios corporativos AAA na Avenida Chucri Zaidan, nas proximidades do MorumbiShopping, e edificações de baixo gabarito, que abrigam residências, bares, restaurantes e lojas de conveniência. Apesar da localização estratégica, a poucos metros da Linha 9-Esmeralda (Osasco-Mendes·Vila Natal) e de dois corredores de ônibus, o tecido tem caráter suburbano e não é condizente com a infraestrutura instalada
Casas térreas, sobrados, comércio no térreo de edifícios com não muito mais do que dois ou quatro andares, arborização, linhas de metrô que proporcionam acesso a empregos de alta remuneração. Eis o sonho molhado de uma minoria que, apesar de votar na esquerda, tem uma relação parasítica e perversa com a cidade, contribuindo para inchar as periferias e dificultar o acesso à moradia digna. Aliando-se a um eleitorado reacionário e pouco comprometido com uma cidade mais sustentável, a esquerda se torna um agente que contribui para a destruição do planeta, mesmo que diga o contrário no Instagram

Índice


Contextualização

Recentemente, veiculamos em nossas mídias (Telegram, Mastodon e Facebook) um artigo do portal ((o))eco sobre emergência climática e, francamente, é doloroso compartilhar qualquer material a respeito. Se, de fato, estamos cruzando a linha e impondo danos irreversíveis ao planeta, pelo visto, o recado ainda não chegou na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP).

A ideia de emergência climática, mesmo que respeitada e propagada pelo campo progressista, não está devidamente conectada com as ações enérgicas necessárias para frear a catástrofe produzida pelo egoísmo e ignorância do ser humano. Negacionismo climático é algo que esperamos das fileiras reacionárias da população brasileira, não da esquerda.

Ora, como pode o campo progressista estar preocupado com o aquecimento global, quando flerta de forma contínua e profunda com formatos de uso e ocupação do solo que são permeados por ineficiência e desperdício de recursos?

Como pode o campo progressista estar preocupado com o aquecimento global, quando o transporte público só é lembrado dentro de limites claramente rasos, oportunistas e populistas, tais como: a defesa da manutenção de cobradores (há muito, tornados obsoletos pela tecnologia de bilhetagem eletrônica); a repulsa à racionalização de linhas de ônibus com elevada sobreposição; a negligência de longa data ao transporte sobre trilhos, que tem sido bombardeado por investidas privatizantes da pior espécie; a indiferença quanto ao encolhimento do sistema de trólebus; e, claro, uma defesa genérica de tarifa zero, que ignora o contexto metropolitano, as relações funcionais e o possível estresse dos sistemas.

Na recente revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, o campo progressista adotou uma estratégia preguiçosa, desonesta e elitista, aliando-se com associações de bairros nobres. A ficha não caiu naquele momento e continua não caindo, mesmo depois de uma derrota acachapante na Câmara.

“Todo mundo quer poder morar numa casa, ou num bairro que tenha uma verticalização não tão grande”, assim começa a fala de Paula Santoro, uma das representantes da intelectualidade da Universidade de São Paulo (USP). A construção de prédios em vez de casas vai desconfigurar bairros, destruir quadras e, por consequência, modos de vida. O alerta é da coordenadora do LabCidade, @paulafsantoro. Em entrevista na @CBNoficial , Paula detalhou os efeitos nefastos do PL da revisão do Plano Diretor.

Se ainda não ficou claro, vilas com sobrados e casas térreas em pleno Centro Expandido, mesmo que repletas de vasos de plantas e alguma arborização, infelizmente, não são sustentáveis, nem protegerão ninguém, nem moradores, nem fetichistas, do flerte com morfologias que se arvoram, fundamentalmente, na exclusão e no espraiamento urbano. A expressão máxima, vista a olho nu ao longo do processo, resultou numa oposição pequena e barulhenta, reagindo contra a construção de edifícios, num raio de aproximadamente 500 metros de uma estação de metrô, ou numa envoltória de aproximadamente 300 metros de um corredor de ônibus.

A revisão das diretrizes que norteiam São Paulo foi atrofiada para se encaixar num punhado de quadras com m² pornográfico, enquanto a maior parte da população seguiu alienada, esmagada pela luta pela sobrevivência.


Esquerdismo way of life

A água que chega nas torneiras de Pinheiros não sai das nascentes que são capturadas para frear o aumento da oferta de moradia para as classes médias e altas — as únicas capazes de esboçar qualquer desejo lúcido de viver nos bairros mais desejados do Centro Expandido —, mas das represas que a população periférica, que sofre os choques de preços das restrições defendidas por nomes proeminentes da esquerda, ocupa e polui para conseguir ter um teto e dormir algumas horas por noite, enquanto passa a maior parte do tempo trabalhando para limpar os banheiros, preparar refeições e educar filhos de falsos ambientalistas, a muitos quilômetros e minutos de distância.

A emergência climática não é óbvia aos núcleos mais poderosos da esquerda paulista, porque admiti-la significaria interferir em privilégios e questionar valores sobre meio ambiente e bem-estar que, infelizmente, não passam de um misto de racismo velado e malthusianismo. O fetiche paisagista não admite que certos atributos, como arborização e comércio local vibrante, não dependem da manutenção de edifícios térreos ou, quando muito, de quatro ou oito andares.

Diante do aquecimento global e da hipocrisia que encontrou ambiente fértil na revisão do Plano Diretor Estratégico, sentimos que é preciso, de uma vez por todas, apontar que o progressismo não é uma espécie de estilo de vida ou, com a devida licença para a cafonice de certas posturas, um lifestyle. É preciso apontar que não votar na direita, infelizmente, não elimina o terraplanismo urbanístico. Também não adianta comprar roupas usadas num brechó, abandonar o consumo de carne, plantar temperos no corredor ou pendurar uma bicicleta cara na varanda.

Na arena das cidades brasileiras, é perfeitamente possível votar na esquerda contra a direita hegemônica, sem, no entanto, deixar o espectro da direita e, portanto, o reacionarismo.

A ideia de “capacidade de suporte”, recorrentemente presente no ambientalismo às avessas do Centro Expandido, não passa de um eufemismo para controle populacional. O que as associações de bairros exigiram durante a revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo, nada mais é do que uma espécie de “controle de fronteiras”, que visa dificultar a chegada de novos moradores, externalizando os efeitos mercadológicos, ambientais e logísticos para outras localidades.

Esvaziando termos como “especulação imobiliária”, “verticalização”, “adensamento”, “identidade” e “cultura”, o campo progressista constrói um discurso performático. Embora a destruição do planeta não possa ser negada, os processos que ameaçam a vida na Terra e, consequentemente, nas cidades, podem ser distorcidos e instrumentados a partir dos critérios de alguns eleitores barulhentos.


Remediando o esvaziamento

Especulação imobiliária: qualquer atividade construtiva se torna especulação imobiliária, desviando a atenção para possíveis raízes da escassez de unidades habitacionais, como a não aplicação do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) Progressivo no Tempo, a permissividade quanto à propriedade de múltiplos imóveis e a baixíssima produção pública de habitação de interesse social. O cerne da especulação, que é a noção de valorização infinita de uma propriedade, a partir de razões desconhecidas, é simplesmente ignorado. A mesma esquerda que, supostamente, aplaude movimentos que lutam por moradia, é aquela que naturaliza a ideia de que o valor do m² pode continuar subindo indefinidamente, mesmo que, fundamentalmente, não existam motivos plausíveis para tanto, exceto, é claro, pela escassez de unidades, abertamente defendida como preservação do meio ambiente, embora contribua para sua destruição.

Prólogo Enquanto reacionários encabeçados, principalmente, por urbanistas de esquerda e associações bairristas de direita, brigam para preservar a paisagem de baixa densidade do Centro Expandido da capital paulista, atuando como uma linha auxiliar à direita do prefeito Ricardo Nunes (MDB), grandes empreendimentos continuam surgindo nas franjas metropolitanas. Depois de Mogi das Cruzes, a bola da vez parece estar em Santana de Parnaíba, município do oeste metropolitano que se notabiliza pela condominialização impulsionada direta ou indiretamente pela “grife” Alphaville.

Verticalização e adensamento: a verticalização passa a ser dissociada do adensamento, negando que a morfologia mais comum de tecido denso e pouco vertical é a favela, nome dado a aglomerados subnormais, cujas condições de habitação não são dignas e cuja remediação das patologias das edificações e infraestruturas, mesmo com profundos programas de urbanização, é de difícil execução e modelagem econômico-financeira. Paradoxalmente, edifícios de baixo gabarito (com 8 a 16 andares), admissíveis em localidades suburbanas dos Estados Unidos, país que concentra um dos conjuntos mais racistas, segregacionistas e limitantes de ordenamentos para uso e ocupação do solo, são tratados como edificações de alto impacto, num contexto de oferta de infraestrutura muito mais favorável do que aquele presente na vasta maioria dos subúrbios estadunidenses e canadenses.

Recentemente, o LabCidade publicou um trabalho muito interessante a respeito de como a população está distribuída em São Paulo e parte da periferia metropolitana. Intitulado “A verticalização de mercado em São Paulo é branca”, o artigo suscitou uma série de reações, à direita e à esquerda, ou seja, temos mais uma oportunidade de reflexão e de retomar críticas publicadas anteriormente. Não quero entrar em detalhes sobre as reações, mas quero tecer alguns comentários a partir delas.

Identidade e cultura: a paisagem preexistente, ainda que apresente feições suburbanas, com edificações assobradadas ou térreas, é tratada como um traço cultural e identitário de populações de alta renda, quando, na prática, expressa uma segregação e captura da mais-valia ligada à ampliação da infraestrutura, além da manutenção de padrões socioeconômicos que resultam num violento filtro étnico-racial. Tais edificações cristalizam o poder político e econômico no tempo e no espaço, ou seja, sua manutenção nada mais é do que o reflexo da proteção a um “clube de proprietários”, cujos interesses conseguem se sobrepor aos destinos da maioria da população, que pagará com a própria vida, sendo humilhada e privada de acesso facilitado a oportunidades de desenvolvimento pessoal e profissional.

Cada vez mais, estou convencido de que o cerne das péssimas discussões urbanísticas está no consumo. Uma parcela do campo progressista parece viver uma síndrome de impostor quando se trata das trocas que realiza em um ou mais mercados. O consumo se entrelaça com uma série de padrões demográficos, dando indícios sobre renda, deslocamentos, nível educacional, entre outros aspectos. É a partir do consumo que sedimentamos nossa relação com a cidade.


Conclusão

Ciente da gravidade das transformações em curso pela crueldade e inconsequência humanas, este artigo é apenas mais uma das muitas reações que já esboçamos.

Mais do que nunca, é preciso constituir um conjunto cidadão maior e mais consciente. Um conjunto que possua pessoas que caminham, pedalam e utilizam transporte público. Um conjunto que apresente diversidade geográfica, representando vivências que não se limitam a um município. Um conjunto que, como sempre gostamos de dizer, possua mais tempo de periferia do que de aeroporto.

Tratar toda atividade de construção civil como nociva, buscando preservar “clubes de vantagens” que dependem da precarização da vida da maioria, só contribui para engrossar a lista de práticas perversas, sem endereçar questões legítimas de incomodidade e de urbanidade.

O comportamento especulativo, banalizado mesmo entre proprietários e locatários que não estão entre os mais ricos, precisa ser combatido não com um discurso “prédiofóbico”, mas a partir de instrumentos urbanísticos, administrativos e tributários.

Finalmente, a qualidade ambiental da cidade como um todo, ou seja, da mancha urbana e suburbana, definida não só pela contiguidade e conurbação, mas pelas relações funcionais e infraestruturas de circulação, precisa de usos e morfologias racionais: o Centro Expandido da capital precisa de um aumento vertiginoso na oferta de lugares, enquanto a periferia precisa passar por um processo radical de reurbanização, capaz de desurbanizar áreas impróprias para ocupação; as localidades atendidas por sistemas de alta capacidade precisam de um parque de edificações com mistura de usos e de rendas, com vistas a maximizar o papel transformador do transporte sobre trilhos; rodovias e vias expressas precisam sofrer um processo de redução ou completa eliminação, associado a um sistema de parques e da expansão do transporte sobre trilhos e das infraestruturas para mobilidade a pé e por bicicleta.




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