São Paulo é refém de preservacionismos com critérios duvidosos

Por Caio César | 23/04/2025 | 11 min.

Legenda: Fotografia dos limites das Vilas do Sol, na rua Mateus Grou, Pinheiros. Morfologia não condiz com infraestrutura instalada. À direita, um supermercado, comparável à nada popular rede St. Marche, batizado com o sugestivo nome de Quitanda
Enquanto alguns lamentavam a demolição de uma antiga unidade da Cultura Inglesa, tensões tomavam conta da Favela do Moinho e eram reveladas novas imagens da trágica morte de Bruna Silva (estudante da Universidade de São Paulo assassinada nas imediações da Estação Corinthians·Itaquera). Pinheiros, no entanto, parece sempre maior do que a capital paulista. Prioridades

Sobre a recente demolição do edifício da Cultura Inglesa que funcionava na rua Deputado Lacerda Franco, classificado no Instagram como “icônico” e “de valor histórico” por Nabil Bonduki (PT), queremos aproveitar para reeditar alguns comentários na forma de um artigo, para que nosso latim não seja enterrado no submundo das redes pegajosas de Mark Zuckerberg.

De partida, há que se compreender que as pessoas (frequentadoras e, sobretudo, moradoras) do bairro ou da vizinhança mais imediata, correspondem a uma pequena fração da cidade, não podendo ser descartada a possibilidade de protagonismo nas opressões em escala metropolitana que estão ligadas com a preservação de tecidos (ou seja, fragmentos do espaço que humanos transformam para viver) repletos de edifícios de baixo gabarito (ou seja, de pouca altura) e baixa densidade (ou seja, que abrigam poucos habitantes). Pinheiros é apenas um bairro.

Falar genericamente em memória e identidade, ignorando o tamanho da mancha urbana e suas contradições, é um equívoco. Fica o questionamento, de qual memória e identidade estamos falando? Seria aquela ligada a gente potencialmente branca, rica e opressora?

Quando figuras proeminentes da esquerda brasileira, como Nabil Bonduki (PT) e Guilherme Boulos (PSOL) publicam em suas redes sociais, sempre vale avaliar não só os comentários, mas a moderação (ou a falta dela) em relação às ideias de potenciais pessoas eleitoras. Seriam alguns comentários um termômetro de um eleitorado que demonstra ser viciado em volante e cidades pouco densas e muito segregadas? Aparentemente, sim. As tristes demonstrações são constantes e é difícil observá-las com passividade.

Ainda que se negue, muito do que está sendo construído na capital ocorre dentro de condições mercadológicas indissociáveis da população afetada. Em outras palavras, a mesma população que pede a preservação de qualquer coisa é também aquela que, ao longo de décadas, sedimentou o mercado até ele adquirir as feições que tem hoje.

Mesmo que sentimentalmente doloroso para uma minoria endinheirada, a verticalização atual ainda parece menos pior do que vários dos imóveis caros e imensos que insistentemente são defendidos por quem nunca viveu nas nossas periferias. Não há como ignorar a ociosidade quando um dos argumentos contrários à construção de novos edifícios é, justamente, uma nuvem espessa de convenientes imóveis ociosos, não somente jamais inventariados e, portanto, de condições desconhecidas, mas que nunca suscitam a aplicação firme e ampla do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) Progressivo no Tempo.

Aparentemente, para algumas pessoas, Pinheiros não passa de um bairro humilde, com extrema conservação de extratos pioneiros que possuíam e continuam possuindo baixa renda e situação de vulnerabilidade. Parece absurdo, fazendo parecer que o Censo Demográfico está errado e que os frequentadores das audiências — não raramente com falas abjetas — são apenas brincalhões.

Estariam nossos milionários da cidade em Guaianases? Estaria o G1 cobrindo nossas muitas periferias da mesma forma que cobriu a demolição?

Como também parece ser praxe ao envolver burgueses e aburguesados (e isso inclui proletários de renda elevada), os tais “debates” que o vereador utiliza como munição genérica para defender a relevância de certas propriedades privadas, são inundados por discursos que exibem zero empatia com as periferias.

São indivíduos como nós, que há uma década escrevemos sobre transporte público, que formam a maioria da população. Dada a configuração da mancha urbana, acreditamos que Pinheiros é um entre tantos outros bairros cuja memória nunca poderá ser separada dos processos de segregação econômica, social e étnica-racial em escala metropolitana. Pode-se debochar, usar eufemismos ou tentar usar exceções, ou populações sem lastro na configuração atual, entretanto, a realidade continuará se impondo.

Há uma luta em curso não exatamente contra a verticalização, mas contra um tipo de verticalização, mais intensa e com configurações incapazes de satisfazer os anseios ou expectativas de quem já vive em bairros elitizados como Pinheiros. Uma luta que, lamentavelmente, é escamoteada com subjetividades como "memória", "identidade", "ambiência" e toda uma munição semântica e narrativa que pode significar qualquer coisa. E há quem caia em conversa fiada ou simplesmente feche os olhos.

Para além do terrorismo com sentimentos de milhões de reais, há a tokenização de frações do mercado: os “pobres” (sim, com muitas aspas). Capturando a desigualdade socioeconômica e negando a valorização imobiliária cuidadosamente esculpida ao longo de décadas de urbanização difusa e verticalização irracionalizada, o problema passa a ser não a verticalização, mas o público-alvo dos empreendimentos. É um truque muito simples: torne o bairro extremamente caro e, em seguida, diga que aceita novos moradores, desde que eles sejam dos extratos que jamais poderão pagar pelo m², enquanto ataca a produção imobiliária que mira nos atuais moradores, trabalhando para manter o m² cada vez mais caro.

É uma fórmula perfeita: protege e valoriza o patrimônio de quem já mora, ataca parte do capital e comove usando doses homeopáticas do “sonho da casa própria”. Com pouco esforço, a fórmula alivia a consciência de quem sabe muito bem o valor do patrimônio que acumula, sem, no entanto, promover rupturas concretas.

Ora, os edifícios que tanto incomodam estão sendo feitos dentro das condições mercadológicas que foram e continuam sendo sedimentadas pelos críticos. Simples assim! Enobreceram o bairro, logo, a produção de HIS (habitação de interesse social) pelo mercado foi praticamente minada, enquanto a produção pelo poder público se torna extremamente desafiadora, tanto pelos custos (não só em termos do erário, mas de capital político também), quanto pela necessidade de monitoramento para coibir mercantilização cinzenta.

Há quem insista que a verticalização pode ser mais respeitadora, sem nunca detalhar como ela se daria. Arriscando a repetição, parece apenas mais um mecanismo de defesa que expia uma culpa burguesa (ou aburguesada), na qual a produção imobiliária é deliberadamente tornada inviável, mantendo o status quo de tecidos que mesclam mansões, condomínios clubísticos e comércio no que sobrou de sobrados operários (ou nem tão operários assim).

E em que pese o escândalo envolvendo fraudes nos subsídios para produção de HIS, muito da produção criticada não tem obrigatoriedade de destinação social (ou seja, a crítica extrapola o objeto da denúncia), ademais, as fraudes reforçam o desafio de produzir habitação para as classes médias e classes médias baixas — classe baixa praticamente nem entra em virtude do enobrecimento — quando o m² custa facilmente 20 mil ou 30 mil reais. As fraudes também demonstram o descompasso da crítica: a preocupação com a paisagem elitizada superou qualquer tentativa de qualificação e controle da verticalização.

Consequentemente, o encarecimento transformador, que enobrece tecidos (ou os elitiza), no que talvez seja equivocadamente rotulado como gentrificação, seguirá se intensificando com a preservação de tecidos de baixa densidade. Vira leilão: quem pode pagar mais, vai morar; quem pode pagar mais, vai alterar o tecido. Vale ainda dizer que a grita habitual não visa instrumentos como o IPTU Progressivo no Tempo, importantíssimo para dissuadir acúmulo indiscriminado de propriedades ociosas, produzindo um ruído que nada contribui para promover justiça social.

E, não, nada aqui se traduz numa defesa irrestrita e universal de incorporadoras e/ou construtoras. Pelo contrário, quem trabalha para preservar imóveis de baixo gabarito em bairros como Pinheiros, definitivamente, não tem nenhum compromisso com mudanças sistêmicas que visem justiça social e inclusão. Mais uma vez, o histórico não favorece outra visão. Ninguém no Coletivo afirma, neste ou em em qualquer outro material, que o mercado tudo resolve! A questão é: ninguém aqui tem a obrigação de advogar para quem busca um mercado imobiliário ainda mais exclusivo e elitizado.

Mais uma vez, o que se manifesta é uma crítica direcionada a atores antagônicos às construtoras, mas que também dependem de opressão sistemática e estrutural para viverem em apartamentos grandes em edifícios clubísticos, sobrados, palacetes, mansões e outras tipologias que encontramos em Pinheiros e que encontrávamos com maior dominância antes do Plano Diretor Estratégico de 2014 produzir seus efeitos.

Em tempo, o argumento de que a periferia, na figura do Coletivo ou de um de seus membros, não poderia se engajar em discussões nas quais novas construções e, consequentemente, seus responsáveis, terminariam como vencedores, é questionável, não só porque a discussão não mira na construtora ‘A’ ou ‘B’, mas no uso e ocupação do solo a partir do marco regulatório e conflitos e disputas em torno dos espaços regulados (ou não), mas também pelo avanço de tais capitais nas periferias.

A produção de conjuntos habitacionais ou verdadeiros complexos de condomínios (ou megacondomínios) voltados às populações de menor renda, incluindo a classe média baixa, é conhecida e objeto de crítica de autoras como a Ermínia Maricato, que se debruçou sobre o PMCMV (Programa Minha Casa Minha Vida). O avanço de tais capitais e tal produção subsidiada pode ser imbricada com diagnósticos sobre a financeirização de empresas que, no passado, atuavam com capital fechado. Quem ainda não se deparou com imensos empreendimentos ligados a nomes como a MRV?

Justamente pela perenidade, não faz sentido promover um tecido de baixa densidade e baixo gabarito em uma área central, caso de Pinheiros, que já possui ZERs (zonas exclusivamente residenciais, que basicamente abrigam antigos subúrbios de casarões, mansões, palacetes e similares) e ZPRs (zonas predominantemente residenciais, repletas de sobrados velhos e caros) em seu entorno. Imóveis, sobretudo construções baixas, podem ter elevada permanência, mas não são indeléveis.

É fundamental que as críticas que temos feito não sejam “fulanizadas” ou resumidas a frustrações pessoais. Dificilmente a “pessoalização” de opressões estruturais e sistemáticas alterará a realidade cristalizada na paisagem. É grotesco individualizar processos que afetam milhões e ainda exigir que o oprimido pratique pedagogia, demonstrando compaixão e generosidade com os pleitos que partem de bairros como Pinheiros. O COMMU (Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana) acumula mais de uma década falando de infraestruturas marginalizadas, como linhas da CPTM (Companhia Paulistana de Trens Metropolitanos), que são um dos mais poderosos condutores para temáticas urbanas, apesar da invisibilidade. Não faz o menor sentido esmorecer diante do que parece ser uma exacerbação do valor afetivo de memórias de uma juventude privilegiada.

Prólogo Pequenas alterações foram realizadas para explorar possibilidades inexistentes na rede social, além disso, foram feitas pequenas alterações para adequar o conteúdo à proposta do site. Superlotação: subproduto de uma paisagem excludente Legenda: Versão sem recorte da publicação original, de 3 de março. Trem superlotado no Serviço 710 (embarque para viagem entre as estações Ipiranga e Santo André), pico vespertino. Clique para abrir e ampliar “ O problema nunca foi "

Em suma, respeitar a história ignorando o resto da cidade é patético. Especulação imobiliária é o que o Centro Expandido sempre fez, por isso, é muito menos verticalizado do que deveria e ainda abriga bairros de mansões, como Alto de Pinheiros, Jardim América e Jardim Europa.

Cabe ainda salientar que, em nenhum momento, o COMMU se projeta como consenso na representação de uma ou mais periferias. O Coletivo possui uma linha de atuação e plataforma que se baseiam na infraestrutura de transporte coletivo, principalmente, de massa. Na nossa leitura, e isso passa por todo um arcabouço que permeia vidas pessoais, profissionais e trajetórias acadêmicas, o uso e ocupação do solo precisam ser mais condizentes com a oferta de infraestrutura.

O COMMU não “desautoriza” ou “indignifica” indivíduos do Centro Expandido, mas se reserva do direito, à luz das liberdades constitucionais brasileiras, de disputar a importância de patrimônios privados e questionar opressões sistemáticas, estruturais e recorrentes, as quais supostos aliados esquerdistas continuam a praticar e perpetuar.

Pode soar jocoso afirmar que a escolinha está acima dos processos (e estes estão ligados ao modo de produção capitalista, é claro) que produzem as paisagens desiguais e violentas, colocando as memórias de uma minoria privilegiada acima dos efeitos que a morfologia de Pinheiros provoca, mas é legítimo, doa a quem doer. É legítimo que alguém da periferia questione desejos preservacionistas em torno de uma propriedade privada que está baseada num circuito fechado, típico de bairros de alto padrão — para emprestar um pouco da sabedoria de Milton Santos.

Em suma, ninguém da periferia é obrigado a passar pano para a vida burguesa ou aburguesada de um dos bairros com m² mais caro do continente inteiro. História e memória não podem ser dissociadas da problemática apontada. Pode causar desconforto? Pode, mas será que certas figuras constrangidas não estariam muito acostumadas com nossa sociedade violenta, pouco se deparando com alguém que se recusa a abaixar a cabeça?

Finalmente, em que pese a afirmação de que a defesa de edifícios como o recém-demolido seja parte da busca por maior inclusão, e não de uma agenda elitista e contrária à verticalização estimulada pelo atual marco regulatório, o que predomina é uma performance, um teatro: são manifestações com conteúdo programático praticamente nulo, nas quais parece existir, ainda que não verbalizada, consciência dos efeitos práticos: a manutenção do status quo.

Observação: ainda que Pinheiros tenha sido citado diversas vezes, em outros pontos da cidade vemos o padrão se repetindo, com populações que estimularam a periferização e exploraram (e ainda exploram) a mão de obra periférica reclamando, pois, após o ordenamento de 2014, a cidade foi gabaritada e a verticalização difusa foi desestimulada, aumentando a concentração de torres nos entornos imediatos de estações (cerca de 500 m, bastante tímido ainda; em corredores de ônibus, cerca de 150 m, praticamente irrisório).




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