Metrô 24 horas? Não é tão simples

Por Caio César | 01/01/2017 | 8 min.

Legenda: Trem partindo da Estação Tatuapé às 22h13
Para melhor responder às dúvidas de um leitor, o presente artigo visa esclarecer os porquês de não ser tão simples assim implantar uma operação 24 horas em uma linha de metrô

Índice


Antes de começar…

A Região Metropolitana de São Paulo possui dois sistemas ferroviários que transportam passageiros em regiões urbanas e suburbanas, um deles é operado pela Companhia do Metropolitano de São Paulo, que nasceu pelas mãos do município, enquanto o outro é operado pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, que nasceu pelas mãos do governo estadual, visando unificar e remodelar antigos serviços para atender nossos densos e populosos subúrbios com um paradigma verdadeiramente metropolitano. Trem metropolitano, metropolitano e metrô são sinônimos.

Veremos que os dois sistemas possuem importantes particularidades, que precisam ser lembradas quando pensamos na possibilidade de um atendimento 24 horas.


Primeiro ponto: o plano de vias

A regra em geral é bem simples: se uma linha opera 24 horas, ela possui mais de duas vias. Em São Paulo, o único sistema que possui mais de duas vias é o Trem Metropolitano da CPTM, então vou priorizá-lo na discussão.

Ao contrário da Companhia do Metropolitano, a malha do Trem Metropolitano, é bastante heterogênea e sua inserção urbana dialoga com o passado do Centro e de antigos bairros da capital que abrigavam indústrias e uma população operária, ou seja, o Trem Metropolitano não costuma acessar áreas que possuem elevado prestígio hoje e, quando a área acessada tem prestígio, ela não necessariamente possui uma vida noturna tão intensa.

No caso da CPTM, a presença de múltiplas vias costuma seguir uma das duas condições a seguir:

  1. A presença de múltiplas vias se dá no contexto de múltiplas linhas correndo paralelas e adjacentes, que juntas, formam um tronco com quatro ou mais vias, sendo que pelo menos duas vias estão operantes por linha do tronco;
  2. A presença de múltiplas vias se dá no contexto de uma única linha, sendo que uma das vias pode funcionar como uma auxiliar para manobras e estratégias operacionais, mas não para um serviço regular, devido a limitações de infraestrutura que ainda não foram superadas.

O caso 2. é particularmente observável nas linhas 10–Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra) e 7-Rubi (Luz-Francisco Morato-Jundiaí), principalmente nos trechos Mooca-Mauá e Água Branca-Pirituba; o caso 1. pode ser observado no tronco que se desdobra da Lapa até o Tatuapé, considerando as linhas 7-Rubi, 8-Diamante (Júlio Prestes-Itapevi-Amador Bueno), 11-Coral (Luz-Guaianazes-Estudantes) e 12-Safira (Brás-Calmon Viana).

Legenda: Apresentando a heterogênea infraestrutura da CPTM: aqui podemos identificar o tronco formado pelos pares de vias das linhas 11-Coral e 12-Safira na altura da Estação Tatuapé, o conjunto de duas vias da Linha8-Diamante ao lado das rês vias da Linha 7-Rubi na altura da Estação Lapa e as três vias da Linha 10-Turquesa na altura da Estação Mooca

Para facilitar as coisas, estão sendo relevadas particularidades sérias, como a diferença dos sistemas de sinalização e a incompatibilidade entre sentidos de circulação (linhas em mão francesa × linhas em mão inglesa).


Segundo ponto: os atendimentos potenciais diante das limitações

Levando em conta as áreas atendidas pelo Trem Metropolitano e a infraestrutura descrita brevemente acima, é possível pensar em um serviço do tipo Lapa-Tatuapé ou Lapa-Mooca, lembrando que as madrugadas ainda contam com a circulação de cargueiros, manobras de metropolitanos para a operação diurna, manutenção preventiva e corretiva, além de obras de melhoria para elevar o padrão do serviço. Então, assumindo que tudo isso poderia ser compatibilizado, fica a pergunta: haveria demanda justificável para dois serviços tão limitados, cujos bairros atendidos seriam principalmente Lapa, Barra Funda, Tatuapé e Mooca? Com demanda justificável, leia-se: “uma demanda de passageiros que seja tão considerável a ponto de não poder ser atendida por ônibus noturnos”.

É de se duvidar, não é mesmo? Acompanhe o raciocínio:

  • Lapa: bairro de passado industrial, cujo potencial permanece muito pouco explorado, suas feições transparecem com clareza a vida operária de outrora, sendo pontos de interesse notáveis o mercado municipal local e a concentração de lojas de comércio popular (região da Rua Doze de Outubro);
  • Barra Funda: centralidade incipiente, suas feições variam drasticamente conforme o lado da faixa de domínio da ferrovia em que se encontra, de um lado, apresentando um parque industrial que tem observado a troca dos macacões pelos headsets (as indústrias cedem lugar para contact centers), do outro, apresentando um conjunto de shoppings, supermercados e pequenos bares e restaurantes, que atendem sobretudo os empregados de micro e pequenas empresas e alguns poucos condomínios empresariais. Pontos notáveis: Allianz Parque, Shopping West Plaza, Bourbon Shopping, Casa das Caldeiras, SESC Pompéia, Villa Country, Audio Club, Memorial da América Latina, D.EDGE e Espaço das Américas;
  • Tatuapé: importante hub de transporte da Zona Leste, o bairro ostenta um dos m² mais caros da cidade, com a maior parte de suas atrações gastronômicas e boêmias localizadas na face sul da Estação Tatuapé, várias das quais suficientemente distantes para exigirem o uso de uma das várias linhas do Sistema Local da SPTrans, que circulam em ritmo frenético no terminal urbano da estação durante os horários de pico. Ruas com notável concentração de lugares para comer e beber: Itapura, Emília Marengo e Coelho Lisboa;
  • Mooca: a Estação Mooca está localizada em uma área industrial que tem passado por transformação e gentrificação nos últimos anos (leia sobre aqui e aqui), as mudanças mais recentes são marcadas pela inauguração do Restaurante Hospedaria e do espaço artístico Disjuntor. Apesar de a estação não estar tão bem localizada, é possível acessar a Rua da Mooca e locais consagrados, tais como a doceria Di Cunto e a Esfiha Juventus.

Legenda: Nas fotografias podemos conferir as regiões da Barra Funda (Av. Francisco Matarazzo, na altura do supermercado 24 horas Sonda e do Villa Country), Lapa (Rua Dr. Cincinato Pamponet) e Tatuapé (Rua Itapura, na altura do St. John’s Irish Pub), respectivamente

É inegável que há algum grau de vida noturna, mas ela não parece suficiente para exigir um atendimento de alta capacidade, além de, reitero, estar situada em eixos que fogem do padrão Augusta-Jardins-Vila Madalena-Pinheiros-Vila Olímpia, recebendo menos olhares por parte da imprensa.


Terceiro ponto: o horário de funcionamento

O sistema de trilhos permite embarques até a meia-noite de segunda a sexta e domingos, além de embarques até a 1h aos sábados. Em qualquer dia da semana, o Metrô abre suas portas às 4h40, enquanto a CPTM o faz às 4h. A janela de intervenções é bem pequena, portanto. Aos sábados, o sistema fica cerca de três horas fechado, no restante dos dias, cerca de quatro horas.

Legenda: Estação Brás da CPTM após a meia-noite

Não há muito mais para mencionar, pois o horário de funcionamento é o mais amplo do país e, sem dúvida alguma, um dos mais amplos de todo o continente. O maior problema é que a vida noturna fica prejudicada para quem usa a CPTM, visto que o sistema passa por intermináveis obras de modernização e melhoria aos finais de semana e feriados, sobretudo aos domingos e feriados nacionais.

Vale mencionar também que o sistema funciona de forma ininterrupta durante certos eventos, como na Virada Cultural, o que obviamente exige uma reorganização da manutenção programada, já que a infraestrutura, como tentei mostrar, é insuficiente.


Quarto ponto: o preço das intervenções

Para permitir um atendimento 24 horas durante toda a operação comercial, o poder público precisa adicionar mais vias e dar flexibilidade para que as estações possam receber os trens. Traduzindo em miúdos: no caso da malha do Metrô, precisaria reconstruir quase tudo; no caso da CPTM, se houver espaço, implantar as vias e adequar as estações, caso o espaço não seja suficiente, vai custar tanto quanto custa o quilômetro de uma linha nova, de acordo com a tipologia adotada (em superfície/elevado/subterrâneo).

Não é muito animador, não é mesmo? Com uma malha insuficiente, parece no mínimo contraditório elencar o funcionamento ininterrupto como prioridade, principalmente levando em conta as horas de indisponibilidade da rede de trilhos.

Novamente pensando na CPTM, caso serviços expressos sejam implantados, se houver um plano de vias suficientemente flexível (que permita uma boa variedade de estratégias, trocas de vias etc), um funcionamento ininterrupto passar a ser bem mais fácil de ser pensado e talvez até conquistado.


Sexto ponto: operação 24 horas não é comum

A maioria dos sistemas não é desenhado com quatro ou mais vias em mente, porque custa extremamente caro, principalmente quando trechos subterrâneos são necessários para atingir centralidades. Assim como mais recentemente passou a acontecer na capital paulista, o atendimento é suprido por ônibus noturnos, vide por exemplo o sistema Noctillien (na Wikipédia), que atende Paris e Ilha de França.

Você pode ter uma ideia de sistemas que operam 24 horas acessando a lista compilada pelo metrobits.org (em inglês), sendo que das duas dúzias de sistemas listados, apenas oito operam 24/7 (24 horas por dia, 7 dias por semana).


Conclusão

Talvez o artigo não agrade quem deseja um serviço 24 horas para toda a rede ou estava pensando em regiões como Pinheiros e Vila Madalena, mas como foi discutido, existe uma séria limitação de infraestrutura, que não é barata e talvez nem seja fácil de justificar ser rompida. Se houver interesse — pensando num planejamento urbano suficientemente integrado, que, com inteligência, seja capaz de fomentar o dinamismo necessário — , talvez passe a ser possível pensar num serviço limitado dentro da malha da CPTM, bom para bairros como Tatuapé e Mooca, mas os ônibus, que já operam de forma ininterrupta na capital, continuariam sendo indispensáveis.




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