Vereador paulistano superestima inteligência de ônibus sob demanda

Por Caio César | 16/05/2020 | 10 min.

Legenda: Van do UBus em São Bernardo do Campo: tudo não passou de vapor até hoje
Alavancagem de sistemas de ônibus sob demanda continua ganhando força, mas é preciso (muito) mais cautela

O vereador Police Neto patrocinou recentemente uma publicação no Facebook, divulgando um artigo em seu site, intitulado “Ônibus por Demanda é resposta inteligente para transporte seguro em tempos de Covid-19”.

Se por um lado, é positivo saber que há um vereador que olha para determinadas tecnologias (um dos membros do Coletivo inclusive já participou de uma hackatona promovida pelo vereador, ficando em segundo lugar) e valoriza soluções disruptivas, por outro lado, não é tão positivo assim a repetição de alguns chavões e lugares-comuns, como a ideia de São Bernardo do Campo tem um sistema de ônibus sob demanda, quando não tem, ou então que algoritmos e inteligência artificial, que não foram apresentados publicamente, podem fazer maravilhas.

Vamos então à crítica do artigo do vereador, feita ponto a ponto, parágrafo por parágrafo. Durante a crítica, termos como “transporte sob demanda”, “ônibus sob demanda”, “mobilidade como serviço” e “mobility as a service (MaaS)” poderão surgir, contextualizadas para a ideia de uma plataforma de ônibus cujas viagens são ditadas pela demanda gerenciada por uma plataforma tecnológica.

Os paulistanos que têm se espremido nos ônibus da cidade ou que têm se atrasado constantemente em função da demora dos coletivos poderão contar com uma nova alternativa para se deslocarem. É que, em virtude da crise sanitária provocada pelo coronavírus e seu impacto no transporte coletivo, o vereador Police Neto apresentou projeto de lei que autoriza a operação de ônibus sob demanda em São Paulo, dando uma resposta concreta à contínua exposição à covid-19 que parte da população tem se submetido todos os dias.

Distorção. O controle da crise sanitária deveria ser baseado em dois pilares: garantia e controle, ou seja, garantia de renda e de futuro pós-pandemia, bem como controle por parte do estado, que precisa tutelar mais fortemente a sociedade civil e o mercado. Não temos obtido êxito em nenhuma das duas frentes e, ao falharmos reiteradamente, o que expõe a população ao vírus são os deslocamentos.

O transporte sob demanda não reduz a demanda, pior, nem é transporte de massa, porque tem baixa eficiência e baixa capacidade. Toda a espinha dorsal da mobilidade, que é baseada em sistemas de trilhos e sistemas de corredores com ônibus superaticulados, não pode ser convenientemente ignorada para favorecer o lobby de aventureiros.

MaaS não é resposta concreta. A pandemia está apenas sendo utilizada como facilitadora, uma vez aberto o precedente, será difícil voltar atrás.

Realidade mundo afora e inclusive em cidades brasileiras como Goiânia e São Bernardo do Campo, o sistema permite controlar o embarque de passageiros, além de dar aos usuários a previsibilidade de chegada dos veículos ao ponto de espera.

Impreciso, para dizer no mínimo. São Bernardo do Campo não possui ônibus sob demanda, porque jamais passou de um vapor anunciado pela mesma oligarquia que é dona de uma série de empresas de ônibus (nomeadamente Metra, Viação ABC e Publix) e detentora de um sistema de bilhetagem que só funciona em São Bernardo do Campo (o infame Cartão Legal, que de legal, não tem nada, porque é um sistema burro e isolado).

O UBus jamais operou no âmbito municipal, apesar de ter sido ventilado por veículos simpáticos ao tecido empresarial tóxico do setor, no entanto, ensaiou uma operação no âmbito intermunicipal, que era simplesmente imoral, ao colocar jamantas rodoviárias para circularem junto com ônibus comuns do Corredor Metropolitano ABD da EMTU. Era uma aberração, que um mandato paulistano, distante da realidade do ABC Paulista, insiste em ignorar.

Em Goiânia, como já ficou evidente num outro texto lobista publicado na Folha de S.Paulo, a operação é simplesmente irrisória e, mesmo que fosse propalada como formidável, ninguém deveria acreditar sem dados e evidências mais contundentes.

Quanto ao “mundo afora”, mais uma vez, nenhum caso de sucesso internacional foi citado. É curioso que na hora de ampliar sistemas de trólebus (inspirando-se em países do Leste Europeu, por exemplo), implantar sistemas modernos de bondes (que estão espalhados por toda a Europa e ganharam tração até mesmo em cidades estadunidenses que tinham destruído seus antigos sistemas no pós-guerra) ou observar quais tipologias permitem a construção de sistemas de metrô pesado com rapidez (observando sistemas chineses e latinos mais novos), o mundo não é exemplo, mas para ventilar tecnologias com baixa comprovação de eficiência, o cenário internacional ganha forte peso, embora, na prática, pouco se mostre.

O que nós temos vistos é que sistemas como o BRIDJ, que era bancado pela montadora Ford, não perduram. O BRIDJ começou a naufragar em 2017, quando parou de operar. Na Austrália os serviços também não se sustentaram, mesmo com subsídio governamental. Em Cingapura, a operação de outro serviço de ônibus sob demanda, chamado de Beeline, cessou em janeiro de 2020.

Outro problema do “mundo afora” é a homogeneização, principalmente por causa do tom em escala avassaladora, abrangendo um planeta inteiro. Se olharmos para os Estados Unidos, que infelizmente exerce influência excessiva na América Latina, observaremos que serviços sob demanda não parecem ter grande representatividade em cidades com a dimensão e a densidade de São Paulo. De fato, de acordo com A Guide for Planning and Operating Flexible Public Transportation Services, p. 10, uma parcela considerável dos serviços (mais da metade) não opera em áreas urbanas:

  • 36% operam em áreas rurais;
  • 20% operam em pequenas cidades;
  • 40% operam em áreas urbanas e suburbanas.

E antes de olhar para os 40% com positividade, veja o gráfico abaixo, extraído da mesma fonte:

Legenda: Tipos de serviços flexíveis por área. Fonte: A Guide for Planning and Operating Flexible Public Transportation Services

O gráfico simplesmente não nos permite distinguir o que é subúrbio, o que é subúrbio consolidado e o que é urbano com precisão (acredite, nós tentamos utilizando um programa de edição de imagens, mas o algoritmo de compressão das imagens impede a coleta das cores na legenda).

São Paulo não possui muitas configurações que lembem os subúrbios norte-americanos, de fato, uma das maiores concentrações, na forma de comunidades muradas, está localizada nos municípios de Barueri e Santana de Parnaíba, como parte de vários empreendimentos da Alphaville Urbanismo. Os 40% de urbano/suburbano do levantamento da TCRP não são animadores, pelo contrário, são um sinal de cautela para planejadores brasileiros, que, por algum motivo, estão deslumbrados com serviços sob demanda.

Legenda: Tipos de serviços flexíveis. Fonte: A Guide for Planning and Operating Flexible Public Transportation Services, p. 10

Vale ainda mencionar que quase metade dos serviços sob demanda identificados pelo guia de planejamento acima são serviços de paratransit, ou seja, de transporte para pessoas com necessidades especiais (vide tabela acima, categoria Route Deviation for Persons with Desabilities, que crava 45,1%). Se você nunca ouviu o termo paratransit, não se preocupe, a capital possui um serviço do tipo que pode ser considerado referência para o país e o nome dele é Serviço de Atendimento Especial, mais conhecido como Atende+, enquanto a EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos) regula o Serviço Especial Conveniado (SEC), mais conhecido como Ligado, que atende estudantes com restrições motoras severas e necessidades de deslocamentos em escala intermunicipal.

Segundo o parlamentar, o valor da passagem não deve ser diferente do que é pago hoje pelos paulistanos que usam o transporte público. “Com inteligência artificial e o sistema de reservas por aplicativo, as empresas têm como dar muito mais eficiência ao quilômetro rodado por quantidade de passageiros, e isso não encarece o valor da passagem, mesmo com um serviço de alta qualidade”, explica.

Trata-se de uma premissa do parlamentar, nada além disso. Premissas podem nortear a formulação de hipóteses, mas não deveriam nortear a produção de políticas públicas. Questionamos:

  1. Qual o referencial teórico?
  2. Não é possível produzir evidências primeiro?
  3. Como a inteligência artificial contribui?
  4. Como o sistema de reservas contribui?

Cabe salientar que já fizemos críticas sobre a supervalorização da ideia de reserva de lugares no passado, no mesmo artigo que questionou o lobby disseminado por um jornalista da Folha de S.Paulo e também no artigo que questionou o clandestino de luxo da Metra.

Observe ainda que o valor da passagem está principalmente atrelado à demanda, descartando fatores como insumo e infraestrutura. O transporte sob demanda, que é de baixa capacidade, vai invadir a infraestrutura do transporte por ônibus de maior capacidade, a exemplo de táxis?

O texto do projeto prevê o funcionamento dos ônibus por demanda tanto pelo sistema de flexibilidade total, em que o usuário escolhe origem e destino de referência e o ônibus mais próximo, como pelo sistema misto, no qual os veículos operam com rota fixa, tendo como destino final ou inicial polos do sistema de transporte público nos horários de pico. “A ideia é que a operação rode em toda a cidade, interligando terminais e equipamentos públicos de saúde, e atendendo regiões específicas, sempre fazendo rotas alternativas que não são feitas pelo sistema público”, afirma.

Para a operação rodar em toda a cidade, quantos veículos deverão ser alocados? A alocação do poder público vai se sobrepor à alocação feita por algoritmos proprietários, fechados, que não são escrutinados pela burocracia? O mandato realizou uma análise de trajetos, para identificar o espaço para as supostas alternativas? Por que a lógica de alternativa, que remete à competitividade, faz sentido num serviço público essencial, no qual deveria ser privilegiada a lógica de integração, unidade e complementaridade?

A interligação de terminais, é verdade, nem sempre é feita de maneira extremamente direta pelo Sistema Local, não discordaremos caso alguém reclame que “a lotação dá muita volta”, por outro lado, não discordaremos caso alguém aponte que o mesmo ônibus encara loteamentos que surgiram fortemente dependentes de autoconstrução e que carecem de vias coletoras e arteriais eficientes, que permitam deslocamentos mais diretos.

De novo, o transporte sob demanda, que parece ser idealizado a partir da lógica de cidades estadunidenses com sistema viário mais heterogêneo e menor densidade, não é confrontado com as especificidades das metrópoles latinas, como é o caso de São Paulo.

Finalmente, no caso de acesso a terminais, não voltamos aos mesmos problemas de aglomeração e transbordo que são, infelizmente, regra no transporte coletivo e que, devido às circunstâncias sanitárias atuais, como argumentamos no início deste artigo, deveriam ensejar esforços para redução substancial dos deslocamentos, ao invés de pirotecnias?

Se aprovado o projeto de lei — que ainda não foi colocado em votação na Câmara — , as operadoras deverão assegurar a distância mínima entre os passageiros e garantir o uso de máscaras a todos os motoristas e usuários que utilizarem o serviço. Os ônibus também terão de ser higienizados regularmente.

Mais otimismo. Mal temos conseguido fazer isso no transporte regular. O veículo vai levar uma pessoa por assento e, no caso dos assentos duplos, um dos lugares ficará ocioso? Qual o protocolo de higienização a ser seguido?

O projeto prevê, ainda, que as pessoas possam utilizar o Bilhete Único como forma de pagamento. Além disso, todo valor arrecadado pela Prefeitura em função da operação do sistema será destinado ao combate à pandemia ou ao cumprimento das metas estabelecidas no Plano Nacional de Mobilidade Urbana.

A utilização do Bilhete Único é positiva, mas não fica claro se existirão integrações. A ideia do fundo também é interessante, mas é otimista, uma vez que não apresenta previsão de potencial de arrecadação e dá a impressão de que os sistemas serão superavitários, contrariando os casos de fracasso que se espalham mundialmente.

A operação valerá por 18 meses, que podem ser prorrogados em caso do estado de emergência provocado pela pandemia se estender.

Vamos ser pragmáticos e menos ingênuos aqui. Qual empresa vai levantar uma plataforma tecnológica, adquirir ou alugar veículos, treinar profissionais etc, para operar por meros 18 meses? Mesmo que a empresa projete o triplo do prazo, parece o suficiente para amortizar o capital inicial necessário para o negócio?

A proposta do vereador Police Neto, mesmo que bem intencionada, é perigosa e problemática. Se existe a intenção de promover sistemas sob demanda, seria melhor apresentar evidências primeiro.

Este texto não tem a intenção de agredir o mandatário ou sua equipe, pelo contrário, como falado na abertura do artigo, o vereador tem aspectos positivos, de fato, é um dos poucos mandatos da Câmara paulistana que merece ser acompanhado e fornece instrumentos para tal, como uma boa newsletter, um bom site etc.

O Coletivo se coloca à disposição por meio de seus canais oficiais de contato.




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