Discussão sobre clandestinidade do UBus subestima a complexidade do território e da política

Por Caio César | 04/10/2019 | 7 min.

Legenda: Van do UBus em São Bernardo do Campo: operação comercial ainda não decolou
E se o serviço Metra Class não passar de um “clandestino de luxo” ou “fretado por aplicativo”?

A prefeitura de São Paulo, ao interferir na operação dos ônibus executivos recém-lançados pela Metra, contribuiu para alimentar uma série de discursos supostamente favoráveis à inovação tecnológica, empreendedorismo e uma melhor mobilidade. Balela. Como falar de inovação num contexto de monopólios naturais, corporativismo faccional e captura do estado? Para tornar tudo pior, a comparação com a Uber em meio ao buzz que se formou, com sites de tecnologia publicando a respeito (vide aqui, aqui, aqui e aqui), foi uma espécie de tiro no pé da prefeitura da capital paulista, que mais uma vez assumiu o papel de vilão estatal.

Mais uma vez a mídia especializada não cumpre com seu papel, seja aquela voltada à cobertura do mundo da tecnologia e da informática, seja aquela voltada à cobertura dos meios de transporte. O COMMU (Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana), sendo parte da sociedade civil que não nutre relações de financiamento com operadores, sendo financiado exclusivamente por apoiadores e recursos próprios de seus membros, mais uma vez manifesta descontentamento e preocupação.

Em primeiro lugar, não é estranho que a relação de parentesco entre as empresas envolvidas não tenha sido apontada pelas mídias que tocaram no assunto? A Metra, concessionária do Corredor Metropolitano ABD da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos) é dirigida por Maria Beatriz Setti Braga, enquanto a UBus é dirigida por Milena Braga Romano. A UBus prometeu que estrearia com um serviço de ônibus por demanda no município de São Bernardo do Campo, cuja operação das linhas é feita pela SBCTrans, comandada pela mesma pessoa da família Braga Romano, sendo que o sistema de bilhetagem da SBCTrans, que utiliza o infame “Cartão Legal” é comandado por José Romano Neto, filho da Maria Beatriz. Trata-se de uma condição que põe em xeque discursos ventilando a existência de uma grande inovação em termos de mobilidade urbana e metropolitana.

Similarmente, nenhum veículo de comunicação lançou um olhar crítico sobre a linha seletiva 280, operada pela Urubupungá (empresa que não tem relação com os feudos do Grande ABC), que conecta as cidades de Osasco e São Bernardo do Campo com ônibus executivos (ainda que de padrão inferior), passando por Diadema e por avenidas como a Engo. Luís Carlos Berrini. A Metra ressuscitou tanto a marca Metra Class, que já foi utilizada no passado em micro-ônibus que operavam no eixo Diadema-Brooklin, quanto o número da linha, que ganhou a letra E, se tornando 376E. É justificável, do ponto de vista do marco regulatório ligado à EMTU, especialmente a Resolução STM Nº 75, de 24 de março de 1992, transcrita a seguir (grifos nossos), que um atendimento seja privilegiado em detrimento de outro?

Artigo 4º Compete, ainda, à EMTU, inclusive quando expressamente solicitado pela CTC através de expediente próprio:

I. realizar pesquisas e estudos relacionados ao dimensionamento e operação dos serviços prestados pelas operadoras de transporte coletivo metropolitano por ônibus;

II. realizar estudos técnicos de adequação, racionalização, operação, manutenção, conservação, ampliação, remodelação, desempenho operacional e melhoria dos serviços metropolitanos de transporte coletivo por ônibus, incluindo aspectos de integração intra e intermodal;

III. participar, em conjunto com a CTC, da realização de atividades voltadas ao desenvolvimento dos Recursos Humanos das empresas operadoras do Sistema Metropolitano de Transporte Coletivo por ônibus;

IV. participar da elaboração e executar programas especiais de operação destinados a atender situações emergenciais ou de deficiência dos serviços;

V. elaborar estudos técnicos relativos ao desempenho dos equipamentos em operação empregados pelas empresas permissionárias ou autorizadas;

VI. coordenar a implantação de programas de racionalização do transporte coletivo metropolitano por ônibus;

VII. prestar apoio técnico e administrativo à CTC.

Parágrafo Único — Os estudos técnicos e relatórios periódicos desenvolvidos pela EMTU, por solicitação da CTC, atenderão às diretrizes e indicações por esta estabelecidas, devendo estar sempre acompanhados das pesquisas e demais informações técnicas e de caráter metodológico que embasaram a elaboração do documento.

É também alarmante que ninguém tenha questionado a interferência na operação das linhas regulares do Corredor Metropolitano ABD. É tolerável que um ônibus rodoviário divida espaço com ônibus urbanos, sendo que o corredor praticamente não tem áreas para ultrapassagem e que todas as paradas fora de terminais exigem o pagamento dentro do veículo, tornando o embarque moroso e indutor de congestionamentos?

Por que o serviço não veio acompanhado de obras de infraestrutura no corredor, tanto para proporcionar pré-embarque, como para readequar as paradas de embarque, extremamente rústicas e incapazes de proteger adequadamente os passageiros de intempéries?

Legenda: Paradas do Corredor Metropolitano ABD: frugalidade, subdimensionamento e propensão à formação de filas de ônibus no horário de pico

Estamos falando de uma infraestrutura inaugurada em 1988, que até hoje não foi capaz de racionalizar a oferta de transporte em direção ao Riacho Grande, uma vez que a sobreposição de linhas intermunicipais e municipais é gritante e que não existe o conceito de tronco-alimentação, tornando o Terminal Metropolitano Ferrazópolis subutilizado. O governo estadual, como concedente da infraestrutura do corredor, poderia ter buscado saídas mais inteligentes, com vistas à recapacitação e melhoria da infraestrutura, mesmo que abrangendo apenas parte do corredor, mas não o fez.

Legenda: Sobreposição de itinerários na Avenida Brigadeiro Faria Lima, umas das principais do Centro de São Bernardo do Campo, beira a estupidez

A omissão das estatais ETCSBC (Empresa Transporte Coletivo de São Bernardo Campo) e EMTU levanta suspeitas de captura da máquina do Governo do Estado de São Paulo por determinados atores privados, que estão se sobrepondo aos interesses nas escalas regional e metropolitana, uma vez que solapam o papel regulador e planejador que apenas o estado é capaz de exercer, tornando a população refém de serviços com relação custo × benefício no mínimo duvidosa, além de desequilibrarem o desenvolvimento, produzindo deseconomias de escala, uma vez que a infraestrutura não está sendo utilizada da melhor maneira.

O esquema adotado pela plataforma UBus não é necessariamente ruim, a ideia de pagar digitalmente, selecionar previamente o lugar e agendar a viagem tem seus méritos, mas não isenta nenhum dos atores estatais e privados de críticas e de questionamentos. Também é equivocada a ideia de que se trata de um modelo futurista, que revela uma tendência inevitável, pois ela despreza não só o planejamento territorial em geral, mas despreza ainda, a reboque, a relação entre a morfologia urbana, a densidade demográfica, a distribuição de postos de trabalho e polos de interesse, entre outros muitos aspectos.

A ideia de transporte sob demanda, encarada diante de noções ainda difusas e pouco consolidadas de MaaS (Mobility as a Service, que pode ser livremente traduzido para Mobilidade como um Serviço), parece ter sido importada diretamente de subúrbios estadunidenses de baixíssima densidade, que se espalham ao redor de um pequeno e relativamente compacto núcleo central verticalizado, cuja diversidade de usos não tende a ser das maiores. Vamos substituir a importância de consolidar cidades compactas, amigáveis para pessoas, estruturadas a partir de eixos facilmente identificáveis de transporte coletivo? Consideramos que é mais fácil buscar a compactação e a qualificação das infraestruturas existentes, o que se traduz em farta oferta de transporte (intervalos abaixo de 5 minutos e boa capilaridade), porque todo o conjunto é desenhado para permitir isso.

Legenda: Remodelação de cruzamento complexo com vistas à priorização dos modos ativos e coletivos, em região com maior densidade e compactação. Fonte: Adaptado do Guia Global de Desenho de Ruas, p. 386

A atitude da prefeitura de São Paulo, sob o comando de Bruno Covas (PSDB), surtiu um pequeno ruído nas redes sociais, mas não parece ser o maior dos problemas no momento.

Ao nosso ver, o serviço se assemelha muito mais ao polêmico Buser, se afastando das linhas seletivas atualmente em operação. A reserva antecipada do lugar pode significar uma tendência a ser ainda menos eficiente por conta disso, uma vez que os ônibus Metra Class deverão dar prioridade a quem reservou o assento primeiro, subvertendo completamente a lógica de ocupação, em outras palavras, a pessoa que reserva ocupa o assento, mesmo sem estar nele. Um serviço assim não atende aos interesses da coletividade, embora ironicamente ocupe espaço no corredor de ônibus utilizado pela coletividade, entretanto, sem o uso das pistas exclusivas, o “fretado dos Setti Braga” iria naufragar, eis o uso da Metra e do Corredor Metropolitano ABD nesse serviço, aparentemente extrapolando o propósito do contrato de concessão.

Observação: a concessão da Metra é a mais obscura do estado. Ninguém nunca viu o contrato de 1997, nem o atual, que venceu em 2017, não se sabe quais são as reais atribuições da empresa, qual órgão do estado que a fiscaliza, penalizações por descumprimento de cláusulas etc. Buscas no Diário Oficial e no site oficial da EMTU foram inócuas até o momento.

Se queremos discutir a oferta de linhas seletivas em pistas exclusivas e/ou com maior conforto e inovação, então os termos precisam ser outros e as barreiras de entrada devem ser reduzidas, de forma a verdadeiramente estimular a concorrência e a participação da sociedade civil no processo.


Colaborações: Diego Vieira, Eduardo Ganança e Ivo Suares



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