Espera por ônibus pode ultrapassar uma hora em Mogi das Cruzes

Por Caio César | 27/06/2021 | 9 min.

Legenda: Ônibus da linha E896 passando pelo Centro Cívico, Avenida Vereador Narciso Yague Guimarães
Serviços privatizados são sinônimo de veículos de concepção rústica, longos intervalos e ausência de integração tarifária com outros modos de transporte. Aos finais de semana, há linhas com intervalo na faixa dos 90 minutos

Índice


Contextualização

Hoje, domingo, 27, uma reclamação foi publicada no grupo “Bem Vindo a Mogi das Cruzes - Uma cidade monitorada por pessoas” — um dos poucos grupos do Facebook sobre uma cidade da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo) que não está inundado com propagandas indesejáveis ou que não se tornou um covil reacionário —, tratando da Linha C403 (circular Terminal Central-Jardim Camila) do SIM (Sistema Integrado Mogiano).

De acordo com o relato, após a partida das 9h50 no Terminal Central, o próximo horário seria o das 11h15, ou seja, a passageira foi informada de que precisaria amargar 1 hora e 25 minutos mofando na plataforma, pelo menos. A situação (que é absurda, diga-se de passagem) não é muito melhor do que aquela indicada no site da Secretaria Municipal de Transportes de Mogi das Cruzes:

Dia Útil

Ponto: A | Sentido: Ida

04:30 . | 05:00 . | 05:15 . | 05:40 . | 06:05 . | 06:30 . | 06:55 . | 07:20 . | 07:45 . | 08:10 . | 08:55 . | 09:40 . | 10:25 . | 10:50 . | 11:15 . | 11:40 . | 12:05 . | 12:30 . | 12:55 . | 13:20 . | 13:45 . | 14:10 . | 14:35 . | 15:00 . | 15:30 . | 16:00 . | 16:30 . | 17:00 . | 17:30 . | 18:00 . | 18:30 . | 19:00 . | 19:30 . | 20:00 . | 20:45 . | 21:20 . | 22:00 . | 22:45 . | 23:40 . | 00:10 . |

Sábado

Ponto: A | Sentido: Ida

04:30 . | 05:10 . | 06:00 . | 06:35 . | 07:30 . | 08:15 . | 09:00 . | 10:30 . | 11:30 . | 12:30 . | 13:30 . | 14:30 . | 15:20 . | 16:10 . | 17:00 . | 17:50 . | 18:40 . | 19:30 . | 20:15 . | 21:49 . | 22:45 . | 23:30 . | 00:10 . |

Domingo

Ponto: A | Sentido: Ida

04:30 . | 05:10 . | 06:00 . | 06:45 . | 07:30 . | 08:15 . | 09:00 . | 10:30 . | 11:30 . | 12:30 . | 13:30 . | 14:30 . | 15:20 . | 16:10 . | 17:00 . | 17:50 . | 18:40 . | 19:30 . | 20:15 . | 21:40 . | 22:45 . | 23:30 . | 00:10 . |

Mesmo se seguida a grade oficial, o intervalo das partidas ainda é muito grande durante os finais de semana. Mesmo que a prefeitura alegue que a grade sofreu alterações em decorrência da atual crise sanitária e econômica, não há como normalizar uma operação de tão baixa frequência.


Sistemas de transportes são um tipo de monopólio natural

A questão que mais motivou a escrita deste artigo, porém, foi outra: a noção de que o transporte não é um monopólio e de que basta abrir vagas para outras concessionárias. No nosso entendimento, não é assim que funciona.

Mais do que nunca, estamos cada vez mais entrincheirados em meio à troca de tiros entre partidos e candidatos. A cada minuto, são disparadas inúmeras informações sobre os mais diversos assuntos, por diferentes canais. Muitas das informações, no entanto, enveredam por uma disputa ideológica praticamente religiosa, que não busca ou omite determinadas informações. Cansados do fogo cruzado e das metralhadoras de desinformação, decidimos recuperar algumas considerações sobre a regulação de sistemas de transporte público coletivo.

O primeiro aspecto que precisa ser observado é o econômico: transporte é um monopólio natural, ou seja, é um serviço cujas características não propiciam um ambiente de livre concorrência. Com o avanço da agenda neoliberal no Brasil, alinhada com a transição do capitalismo global para uma economia baseada na acumulação flexível, monopólios naturais são concedidos a uma ou mais empresas privadas. A concorrência, então, se dá no âmbito do certame e não nas ruas. Para melhor entender o que queremos dizer com neoliberalismo e com a transição para uma capitalismo de acumulação flexível, veja essa citação do Politize:

A partir dos anos 1970, o mundo passou a vivenciar um declínio do modelo do Estado de bem-estar social, o que deu espaço para que ideias liberais aos poucos voltassem a ter preferência na política. Uma das primeiras experiências consideradas neoliberais no mundo foi levada a cabo pelo Chile. Em 1975, o ditador chileno Augusto Pinochet entrou em contato com acadêmicos da Escola de Chicago, que recomendaram medidas pró-liberalização do mercado e diminuição do Estado. Entre tais medidas estavam a drástica redução do gasto público, demissão em massa de servidores públicos e privatização de empresas estatais. As eleições de Margareth Thatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos Estados Unidos no início dos anos 1980 também foram indicativos desse fenômeno. Ambos são considerados até hoje líderes neoliberais.

Fonte: Bruno André Blume. O que é neoliberalismo? Politize, 01/07/2016

Trata-se de um arranjo em que o Estado, na figura da municipalidade, tem papel regulador, logo, o segundo aspecto que precisa ser observado é o político-institucional: não é incomum encontrar indícios de enfraquecimento deste papel ou mesmo da captura da máquina estatal pelo capital privado, o que contamina todo o processo de contratação, fiscalização e estruturação dos serviços. Em outras palavras, há uma perda da capacidade de intervenção do Estado, como muito bem discute Henry Acselrad, por exemplo.

Especificamente sobre o caso mogiano, como o último contrato permitia a renovação, o município optou por ela em 2019, prolongando a exploração pelas empresas CS Brasil (Grupo JSL) e Princesa do Norte por mais 15 anos. Vamos reforçar, mais uma vez, que a dinâmica de contratação em questão é um produto de uma doutrina político-econômica, logo, há determinada carga ideológica. Considerando o panorama metropolitano, é preciso que fique claro que o povo pediu e continua pedindo por privatização ao eleger candidatos inclinados a dar continuidade a programas de desestatização, embora não seja difícil encontrar reclamações sobre os serviços privatizados, principalmente quando as classes médias e altas se sentem lesadas (vide as recentes discussões envolvendo a implantação de novos pedágios na região, como produto de uma concessão rodoviária estadual).

Insatisfação nas redes O Twitter e o Facebook se tornaram verdadeiros repositórios de insatisfação, acumulando resmungos e reclamações quando o assunto são os sistemas de transporte coletivo que atendem a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), incluindo a capital, enfim, aquilo que popularmente chamamos apenas de “transporte público”. A questão central é que muitas das manifestações de insatisfação que foram deixadas nas redes sociais, infelizmente, não parecem conectadas com um desejo verdadeiro de transformação da realidade.

Finalmente, o terceiro aspecto diz respeito ao estabelecimento de ganhos de monopólio, limitando a “importação” de capital de outros locais e, assim, limitando o potencial concorrencial do certame. A detenção da propriedade das garagens, algo que foi objeto de discussão durante a última licitação do sistema de ônibus da capital paulista (veja aqui, aqui, aqui e aqui), é um exemplo de ganho de monopólio.


Excesso de conservadorismo na modelagem e contratualização

Legenda: Ônibus da linha C691 passando pela rodoviária, Avenida Francisco Rodrigues Filho

Para além das práticas liberalizantes na esfera econômica, temos ainda uma postura excessivamente conservadora para a contratualização dos serviços. De partida, podemos levantar as seguintes hipóteses sobre o atual formato:

  • Provavelmente é dependente apenas das tarifas pagas por quem efetivamente utiliza os serviços, reforçando uma lógica liberal que supervaloriza escolhas individuais em detrimento dos impactos sociais e coletivos;
  • Provavelmente é prejudicada pelo desenho de rede, com linhas muito radiais e sobrepostas, produzindo um sistema que prioriza deslocamentos bairro-centro com pouco ou nenhum grau de transferência entre linhas.

Além das hipóteses acima, consideramos que Mogi historicamente pretere o transporte público para favorecer quem anda de carro (obras viárias como a nova Avenida das Orquídeas ou o segundo túnel de um complexo viário no Centro Histórico e Tradicional são dois exemplos recentes), sendo que, quem anda de carro nunca paga pelas externalidades que provoca — não, pagar IPVA (Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores) não é suficiente.


O que fazer?

Se o contrato de 2019 assim o permitir, o ideal seria modificar a lógica de funcionamento de toda a rede, além do custeio, seguindo um modelo mais próximo de Vargem Grande Paulista. No município do extremo sudoeste, o marco regulatório do novo sistema prevê a implantação de um fundo de custeio com participação do setor produtivo, de forma a garantir a manutenção de uma operação tarifa zero, originalmente custeada com recursos da própria prefeitura, como parte de uma ação de estímulo ao desenvolvimento do comércio local. Se Mogi adotasse tarifa zero, solucionaria completamente o problema da falta de integração tarifária entre ônibus do SIM, ônibus da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos, em risco de extinção por força da Lei 17.293/2020).

Série especial Organizada para ocorrer entre os dias 01/09/2020 e 04/09/2020, a vigésima sexta edição da Semana de Tecnologia Metroferroviária, organizada pela AEAMESP (Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Metrô) em formato gratuito e virtual, revela importantes trabalhos ligados ao transporte de média e alta capacidade, produzidos por diferentes atores. O COMMU mais uma vez compartilha impressões do evento por meio de uma série especial. Clique aqui para conferir todos os artigos da série já publicados até o momento.

Resolvida a questão do custeio, é preciso que Mogi das Cruzes rompa com o atual desenho de linhas. Idealmente, o sistema deveria identificar eixos e perímetros de operação, nos quais seria possível operar linhas com excelente frequência, mesmo aos finais de semana. Usuários de fora dos eixos e perímetros realizariam transferências para linhas alimentadoras, que seriam curtas e também teriam uma boa oferta. Chamamos esse paradigma operacional de troncalização. Um possível benefício adicional da troncalização é a adoção de ônibus de maior capacidade e padrões superiores de acabamento e motorização para a circulação nos eixos troncais, o que pode contribuir para melhor qualificar o transporte público e todo o tecido por ele servido.

Legenda: As duas tipologias de sistemas de ônibus comumemente adotadas (Guia TPC, p. 17)

A implantação de terminais de ônibus em Braz Cubas e Jundiapeba, aproveitando a presença de estações da CPTM, algo já aventado em diferentes momentos, poderia ser parte da estratégia. Há ainda a possibilidade de exploração do espaço aéreo dos terminais, permitindo a verticalização destes (algo que também foi aventado pela prefeitura da capital e pela Companhia do Metropolitano), como parte de uma estratégia mais robusta de auferimento de receitas acessórias.

Finalmente, para áreas de baixa densidade, talvez seria melhor buscar operações do tipo MaaS (mobilidade como serviço), baseadas em veículos menores e de menor custo, com acionamento via SMS (mensagem de texto), ligação telefônica (talvez ampliando o escopo do 0800 773-0194), site na Internet e/ou aplicativo para dispositivos móveis.

Observação: salientamos que esse receituário não é exclusivo para Mogi das Cruzes e que várias das cidades da RMSP poderiam utilizá-lo como ponto de partida.




Se você ainda não acompanha o COMMU, curta agora mesmo nossa página no Facebook e siga nossa conta no Instagram. Veja também como ajudar o Coletivo voluntariamente.



comments powered by Disqus