Tarifa zero não é bala de prata, mas pode valer a pena

Por Caio César | 29/12/2022 | 5 min.

Legenda: Ônibus da linha 15A (Detroit [Vergueiro]-Rudge Ramos) na Avenida Brigadeiro Faria Lima em 07/11/2019, cuja tarifa deverá ser reajustada para R$ 5,75 em janeiro de 2023
A tarifa zero, isolada, é tão incentivadora ou garantidora de eficiência quanto a cobrança de tarifa

Em seu artigo intitulado “A Tarifa Zero não vale a pena”, Anthony Ling apresenta uma série de argumentos (alguns deles acompanhados de referências relevantes) para sustentar, em suma, que:

  1. Tarifa zero custa muito caro e exerce uma pressão orçamentária relevante sobre outros serviços essenciais;
  2. Tarifa zero empobrece tanto sistemas de incentivos aos operadores existentes, quanto a percepção de qualidade da população usuária, que se torna mais leniente;
  3. Tarifa zero desestrutura mecanismos de equilíbrio entre oferta e demanda;
  4. Casos nacionais relevantes dependem de recursos como royalties de atividades de extração de recursos não renováveis, tais como minério e petróleo;
  5. O caráter universal da tarifa zero pode acarretar subsídios regressivos;
  6. A tarifa zero pode não resultar em migração modal do transporte individual motorizado para o transporte público coletivo;
  7. A tarifa zero pode reduzir a participação das viagens a pé e de bicicleta, resultando em migração modal do transporte ativo para o transporte público coletivo.

As preocupações de Ling são, a meu ver, bastante razoáveis, no entanto, acredito que elas decorrem fundamentalmente de uma percepção diferente em relação ao papel da maquinaria estatal.

Pessoalmente, observo que organizações ou indivíduos favoráveis à tarifa zero tendem a apontar problemas nos mecanismos regulatórios e fiscalizatórios atuais. De fato, Ling admite que “em São Paulo as operadoras não possuem incentivos de eficiência operacional e a cidade sempre teve caixa para cobrir o prejuízo através de subsídios, que aumentaram sistematicamente ao longo dos anos, garantindo o lucro das empresas”, o que, com bom senso, deve permitir o estabelecimento de um ponto pacífico entre os dois lados.

A tarifa zero, isolada, é tão incentivadora ou garantidora de eficiência quanto a cobrança de tarifa, assim, a maior lição que Ling parece ensinar, ainda que acidentalmente, é que a discussão em torno do subsídio e da universalização do acesso ao transporte não pode abandonar métricas e práticas sólidas para a manutenção da qualidade.

Embora eu acredite que organizações ou indivíduos favoráveis à tarifa zero sejam propensos a cobrar, independente do sistema tarifário vigente, mecanismos mais sólidos de controle e garantia de qualidade por parte dos governos, admito que existe muita dificuldade de fazê-lo, o que pode decorrer desde a formatação da agenda das organizações, envolvendo limitações de tempo, recursos humanos e financiamento, à escolha de uma bandeira em detrimento de outra, dada a natureza fragmentada e heterogênea dos sistemas.

Talvez, priorizar a discussão da tarifa seja muito mais fácil, inclusive do ponto de vista do negócio — organizações, mesmo que não lucrativas ou não governamentais, ainda assim precisam de uma estrutura que maximize a relação entre atividades e recursos disponíveis —, mas não significa que seja a melhor estratégia. Talvez, esteja faltando uma visão um pouco mais abrangente.

Por outro lado, naturalmente, subsidiar o transporte público representa uma disputa orçamentária. Eu entendo que aumentar o subsídio causa desconforto, uma vez que impera uma lógica do tipo soma zero no planejamento orçamentário, ou seja, ganhos de um lado exigem perdas de outro. Infelizmente, como o orçamento é finito, escolhas precisam ser feitas.

Acredito que é cedo para rejeitar a ideia de tarifa zero, tal como Ling parece ter feito. Não escondo minha frustração com o caráter das discussões, como revelei em artigo recente, mas, ao mesmo tempo, tenho a impressão de que a infraestrutura rodoviária (não apenas em termos de viário, mas como elemento sistêmico da mobilidade e da estruturação de relações entre pessoas, atividades e territórios), consome volumes muito maiores de recursos para favorecer o automóvel, possivelmente causando distorções severas.

Contextualização O assunto não recebeu o consenso adequado dentro do COMMU, mas eu gostaria de criticar especialmente a postura do campo progressista e agradeço pelo apoio que recebi de alguns membros, como Tiago de Thuin e o Diego Vieira, além de pessoas que não estão conectadas diretamente ao COMMU, como o Guilherme, responsável pelo São Paulo YIMBY. É importante deixar claro, como principal financiador e contribuidor deste site, que o espaço está aberto para o debate.

Como morador da capital paulista, é óbvio que não estou satisfeito nem com o volume de subsídios dedicados às empresas atualmente responsáveis, nem com os incentivos para busca de eficiência operacional. Minhas posições duras em relação à racionalização, por exemplo, são uma clara demonstração de que eu enxergo oportunidades para otimizar o funcionamento das linhas, no entanto, a tarifa zero não pode ser encarada como uma bala de prata, nem deveria ser uma bandeira capaz de ofuscar o cinismo ou hipocrisia com relação a questões estruturais fundamentais do transporte público.

O município de São Paulo possui um dos maiores sistemas de ônibus do continente americano, no entanto, a promessa de uma reforma, dando continuidade ao choque de racionalização ocorrido durante a gestão da Marta Suplicy, então no Partido dos Trabalhadores (PT), jamais foi cumprida. Legenda: As duas tipologias de sistemas de ônibus comumemente adotadas (Guia TPC, p. 17) Seja pela ligação afetiva de alguns operadores com linhas com as quais sentem terem contribuído por um ou mais motivos, seja pelo populismo de políticos eleitos, seja pela ausência de infraestrutura ou resistência para melhor utilização da infraestrutura existente, São Paulo tem patinado na construção de uma rede de ônibus, que substitua o atual sistema, caótico, incoerente e com sérios problemas de velocidade média, oferta de lugares e articulação local e regional.

Não enxergo nenhum problema em admitir que uma política de tarifa zero não só não resolverá problemas preexistentes, como poderá agravá-los. Eis que apelo, mais uma vez, para que o transporte público não se torne refém de discussões extremamente especializadas. A tarifa é um exemplo de elemento que precisa ser discutido com seriedade, mas cuja discussão não elimina a necessidade de discutir e entrelaçar outros temas.

No final das contas, precisamos de organizações e indivíduos com disposição e capacidade de discutir e pensar o transporte público de forma integral. Não há outro caminho possível, sob pena de se criar um legado de trauma e amesquinhamento, que poderá manchar a imagem do campo progressista.




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