A tarifa zero para os ônibus de São Paulo seria uma política correta? SIM E NÃO

Por Caio César | 05/12/2022 | 14 min.

Legenda: Ônibus da linha 677A-10 (Term. Jd. Ângela-Itaim Bibi) na Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini em 12/10/2022
Recentemente, a Folha de São Paulo publicou dois artigos de opinião respondendo à pergunta “A tarifa zero para os ônibus de São Paulo seria uma política correta?”. Como sempre, a abordagem não foi exatamente a melhor para quem vive fora do Centro Expandido

Contextualização

O assunto não recebeu o consenso adequado dentro do COMMU, mas eu gostaria de criticar especialmente a postura do campo progressista e agradeço pelo apoio que recebi de alguns membros, como Tiago de Thuin e o Diego Vieira, além de pessoas que não estão conectadas diretamente ao COMMU, como o Guilherme, responsável pelo São Paulo YIMBY.

É importante deixar claro, como principal financiador e contribuidor deste site, que o espaço está aberto para o debate.

Em primeiro lugar, eu não quero aqui discordar do artigo de opinião favorável à tarifa zero, contudo, não posso deixar de apontar que Claudio de Senna Frederico, vice-presidente da ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos), trouxe argumentos pertinentes, que em nenhum momento deveriam ser alvo de deslegitimação ou deboche.

Em segundo lugar, eu sigo firmemente a favor da tarifa zero enquanto política pública e, profissionalmente, estive envolvido em estudos para implantação de sistemas municipais de pequeno porte, em municípios como Vargem Grande Paulista, Guararema e Ibitinga, os dois primeiros localizados na RMSP (Região Metropolitana de São Paulo), território que não só abriga o COMMU, como também é (ou deveria ser) nosso principal objeto de estudo, reflexão e disputa.

Série especial Organizada para ocorrer entre os dias 01/09/2020 e 04/09/2020, a vigésima sexta edição da Semana de Tecnologia Metroferroviária, organizada pela AEAMESP (Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Metrô) em formato gratuito e virtual, revela importantes trabalhos ligados ao transporte de média e alta capacidade, produzidos por diferentes atores. O COMMU mais uma vez compartilha impressões do evento por meio de uma série especial. Clique aqui para conferir todos os artigos da série já publicados até o momento.

Longe de ser uma panaceia, a implantação de sistemas completamente subsidiados não pode partir de uma decisão apressada e potencialmente populista que, oriunda de um governo de direita que não tem investido adequadamente na infraestrutura voltada a quem não dirige, deveria ser vista com desconfiança, no mínimo.


A crítica

Sendo morador da Zona Leste e tendo feito a infeliz escolha de estudar planejamento territorial na UFABC (Universidade Federal do ABC) por idealismo, me é claríssimo como boa parte do tecido ativista não sobreviveria a 10 minutos embarcando na Estação Guaianazes da Linha 11-Coral (Luz-Estudantes) da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos).

A falta de noção óbvia da realidade do “progressismo pinheirense” erode qualquer capacidade de atuação crível. Ora, se a demanda reprimida aumentar significativamente ao longo da calha da Radial Leste, quem serão os iluminados que resolverão o problema? Ninguém.

Ninguém se importa. A capital paulista elegeu uma gestão inócua no campo da mobilidade e só agora pode comemorar, após quatro anos, a inauguração de menos de 2 km de faixas exclusivas. A região metropolitana, fragmentada em quase 40 municípios, segue pouco coesa e poucos são os municípios realmente aproveitáveis em termos de política de mobilidade, mesmo que equivocada. Concessões de rodovias são renovadas, ampliadas ou celebradas sob o silêncio perturbador da ignorância e da indiferença.

Cabe a mim recordar que, quando uma passageira perdeu a perna na mesma estação — em fevereiro —, mal conseguimos saber o que aconteceu com ela depois.

Parece-me que alguns exemplos, colocados ou não em prática, como Vargem Grande Paulista, Guararema e Ibitinga (eu me envolvi diretamente em todos, como mencionei na Contextualização) estão sendo esgarçados desonestamente pelo campo progressista, que seleciona sistemas radiais com caráter praticamente suburbano, dado o nosso péssimo uso e ocupação do solo, e um punhado de linhas, com esquemas de financiamento mais uma vez pouco transparentes e com histórico nulo, e extrapola isso para uma capital como São Paulo.

Se a capital, que apresenta dimensões gigantescas, distorcendo completamente a RMSP, passa a subsidiar completamente a tarifa dos ônibus municipais, quais serão os impactos nas regiões limítrofes com outros municípios? De novo, ninguém sabe, ninguém liga, porque o debate ignora que existem cerca de 10 milhões de vizinhos à capital, espalhados em mais de 30 municípios com capacidade técnica que varia de razoável à lastimável.

Eu entendo que algumas organizações recebem financiamento e precisam prestar contas, com imensos desafios ligados ao debate público, no entanto, o COMMU só me fez perder dinheiro, tempo e saúde falando de mobilidade. A sobrevivência do Coletivo é basicamente uma decisão que depende da minha vontade e da minha conta bancária, o que significa que não preciso me preocupar com funding alheio.

Sejamos francos: ninguém precisa gostar da ANTP ou do setor para ler a opinião publicada e perceber que ela é, sim, lúcida. E não se trata de uma lucidez feliz, mas sim de uma lucidez profundamente amarga, que depõe contra muitos (para não dizer todos) nós.

Toda tarifa zero é uma política correta, no entanto, o desafio que precisa ser colocado diz respeito à sua implementação num ambiente profundamente imaturo. Na minha visão de planejador, a tarifa zero da capital não existe sozinha e, como o debate está centrado na capital, ela é inviável.

Não se trata de custeio, puro e simplesmente: se ninguém conseguir avaliar as questões de intermodalidade e relações funcionais, a política não parará em pé, podendo produzir efeitos deletérios. Infelizmente, mesmo com todo o financiamento do mundo, independente da origem, com as características atuais, a tarifa zero não se viabiliza, logo, eu me vejo obrigado a concordar com o texto da ANTP.


O custo adicional para a cidade será muito maior do que o que falta para cobrir o custo atual. Sem pagamento de tarifa, a demanda irá crescer muito, não apenas pela realização maior de viagens reprimidas que não são feitas hoje de forma motorizada, mas também pela transferência de passageiros que viajam em metrô, trens e ônibus do estado. Seria o colapso do sistema, atualmente um dos mais integrados do país — como se retirássemos uma carta da base do castelo.
Claudio de Senna Frederico

Com este artigo, quero apenas destacar questões básicas ligadas ao contexto da metrópole paulista, que não podem passar desapercebidas pela escala nacional das decisões de Brasília, ou pela tradicional escala microscópica das decisões da prefeitura paulistana. Ainda que o atual prefeito da capital paulista acene para um diálogo com o governo estadual, a realidade é muito mais complexa, exigindo um mecanismo (que ainda não existe) para dialogar com todos os outros 38 governos municipais da região metropolitana.

É importante deixar claro que Vargem Grande Paulista adotou tarifa zero para ganhar força na guerra econômica local com Cotia. Nada mais. O único governo municipal que implantou tarifa zero, até hoje não conseguiu cobrar dos capitalistas locais, tirando dinheiro do erário. Sabe-se lá até quando Vargem Grande Paulista terá dinheiro para pagar por um sistema de tarifa zero, que, diga-se de passagem, é bem ruim — ônibus trator, horário digno de subúrbio texano etc, etc, etc, coisas que ninguém fala. De novo, a ideia bonita passa na frente, enquanto sua implementação fica para a população sem escolha.

Concordar que a demanda reprimida e a ausência de instrumentos de coordenação metropolitana, além da assimetria de capacidade técnica e de financiamento, poderiam causar o colapso de todo o sistema, não só o da capital, mas todo o transporte público da Região Metropolitano de São Paulo, como alertou Claudio de Senna Frederico, não é interditar a pauta, mas trabalhar para que ela tenha robustez e respeite a população periférica.

Não cabe a mim oferecer consultoria gratuita, porém, há muitos anos estou farto da pequeno-burguesia que trabalha no terceiro setor e ainda quer que a sociedade produza conhecimento e estudos na base da boa vontade (e os mandatos de esquerda são iguais, jogam tudo nas costas do povo).

Primeiramente, não quero igualar as candidaturas de Fernando Haddad (PT) e Tarcísio Freitas (Republicanos), apenas chamar atenção para a situação, no mínimo irônica, dos contornos do atual pleito em relação às pautas que historicamente são abordadas pelo Coletivo. O COMMU já está há cerca de sete anos na estrada, ou melhor, nos trilhos. Por aqui, falamos muito sobre o sistema metroferroviário que atende as metrópoles de São Paulo e Jundiaí e, se algo ficou evidente depois de tanto tempo batendo cabeça, dentro e fora da Internet, é que muito pouca gente no campo progressista conhece o sistema.

A ideia de que a defesa incondicional da tarifa zero, como um objetivo estanque, separado das características geográficas do território da principal metrópole do continente é, com o perdão da franqueza, uma atitude profundamente estúpida, irresponsável e perigosa. Ainda que tal defesa seja encarada como uma simples tática, sinto-me no dever de informar que toda tática tem seu preço e a população é a moeda que vai pagar a fatura no final.

Se você, que está lendo este texto, não concorda comigo, pode passar o trator ou fazer acusações levianas. Se você acha que faz sentido tratar São Paulo como uma ilha, manda bala. Se você acha que faz sentido ignorar como esse tema exige uma governança metropolitana mais funcional, manda bala. Se você acha que é viável uma prefeitura fazer um estudo desses em 60 dias e, no lugar de fazer lobby para que uma série de fatores sejam considerados, prefere ignorá-los, manda bala.

Eu vou pagar a conta depois, como sempre paguei.

Antes de começar, saliento que os debates sobre temas como passe livre e faixas exclusivas que, sem sombra de dúvida, possuem grande importância, seguem restritos, pior ainda, seguem sazonais, ocorrendo geralmente depois do incêndio, numa eterna e pouco frutífera corrida contra o tempo. O campo progressista (e a esquerda, principalmente), precisa colocar as mãos na cabeça e adotar uma postura mais pragmática, coesa e robusta em prol de uma agenda para a mobilidade na cidade.

Justamente por estar acostumado a pagar a conta por decisões que eu não controlo nem influencio, pouco me importa o “NÃO” da ANTP, caso não tenha ficado claro. A resposta correta é “SIM E NÃO”. Explico: sim, se for feito adequadamente, considerando que a cidade é uma mancha com mais de 30 governos; não, do contrário.

É urgente que o debate siga por outro caminho e que as questões colocadas pela ANTP sejam encaradas de frente, não lateralmente.

Antes de se falar em tarifa zero numa capital como São Paulo, precisamos de uma melhor governança metropolitana.

Sendo bem direto, eu acho que a discussão, tal como está sendo feita, apressada, amadora e rasa, está ameaçando a minha vida e a de outros milhões de paulistas. Volto a fazer perguntas: se o sistema quebrar, quem vai socorrê-lo? Se a integração intermodal ficar prejudicada, quem é que vai resolver? Mais uma vez, alerto para a falta noção de realidade.

Não surpreendentemente, durante as discussões que foram transformadas neste artigo, eu precisei explicar que o financiamento de um sistema de transporte sempre vai tirar verba de algum lugar. Como os recursos disponíveis são finitos, toda alocação orçamentária é um jogo de soma-zero, ou seja, para algum setor receber mais recursos, outro setor precisa receber menos.

Suspeito que uma parcela da esquerda, sem conhecimento técnico e coragem para cobrar mandatos da mesma forma que discute comigo ou levanta bandeiras de forma irresponsável, sente medo ao ser questionada pela mesma população que, supostamente, crê representar e defender. Parece existir uma autocensura que veta qualquer questionamento pertinente, porque há o receio de que ele possa comprometer uma luta que, na prática, depende de um debate qualificado para prosperar!

A construção de políticas públicas não precisa funcionar assim, nem rifar o futuro dos mais vulneráveis. É claro que é difícil discutir tarifa zero em São Paulo: é São Paulo. É claro que vai ter um monte de questionamentos: é São Paulo. Antes questionamentos alinhados com a pauta, que podem ajudar a torná-la mais tangível e sólida, do que o ruído de uma oposição barulhenta.

É inaceitável que a esquerda silencie questionamentos em “espaços seguros”, sendo que seria facilmente agredida se agisse da mesma forma na periferia. Se qualquer pessoa, de qualquer periferia, perguntar o que vai acontecer com a linha XPTO que já está superlotada hoje, sem tarifa zero, é preciso ter respostas convincentes e, entre elas, não é cabível oferecer uma resposta vaga, que basicamente significa “depois a gente vê”.

Na periferia, os ponteiros do relógio das políticas públicas expressam o tempo em anos e décadas, não em dias ou meses. Tudo demora muito na periferia e as respostas são muito escassas.

A possibilidade de precisar encarar uma situação ainda mais caótica durante vários anos, que parece ser pouco óbvia à esquerda pinheirense, é extremamente clara para quem está na periferia e não tem perspectiva de se mudar para o entorno de estações como Fradique Coutinho, Vila Mariana ou Trianon·MASP.

Não por acaso, o levantamento que eu fiz durante o anúncio de expansão da Linha 11-Coral para a Zona Oeste paulistana, encontrei muitos passageiros com receio de mais superlotação.

Introdução Em resposta à licitação de número 0463200001, descrita como “prestação de serviços de engenharia especializada para a elaboração de projeto executivo, fornecimento e implantação dos sistemas de rede aérea de tração, sinalização/SCT, suprimento de energia de tração e via permanente para a extensão da Linha 13 - Jade, trecho Luz - Barra Funda da CPTM”, começaram a surgir reportagens em diferentes tipos de mídias sobre a expansão da mais movimentada linha da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e, com elas, diferentes tipos de opiniões nas redes sociais monitoradas pelo Coletivo.

Não podemos falar de tarifa zero sem levar a demanda reprimida em conta. É óbvio que os sistemas ficarão mais cheios, afinal, um dos pilares de uma política de tarifa zero é o combo inclusão social e acesso à cidade. Este combo, por sua vez, tem um impacto direto na infraestrutura e na população que já era previamente atendida. Talvez seja triste admitir, mas população não é, em geral, paciente como eu estou sendo aqui. Adianto que eu não quero imaginar as cenas de embarques e desembarques, porque já conheço muito bem como é a vida na CPTM, por exemplo.

Quando a capital dá o passo de colocar o assunto em pauta, mesmo que seja só um blefe de uma gestão de direita, abre-se o espaço para falar: “precisamos mesmo de tarifa zero, mas vamos envolver mais atores”. É exatamente o que eu estou tentando fazer com este artigo.

Só aqui na Zona Leste de São Paulo (sem contar a Sub-região Leste, também chamada de Alto Tietê), nós temos uma integração trilho-ônibus muito antiga e delicada. O impacto de um programa de tarifa zero vai ser brutal e nós realmente não sabemos se a infraestrutura acomoda a população com segurança. Quando falamos em racionalização do viário, por exemplo, pressupomos a migração modal do carro pro transporte, mas neste caso, a gente não tem isso tão claro, na verdade, eu tenderia a pensar em pouca ou nenhuma migração modal, o que significa que mesmo emergencialmente, não seria possível utilizar o viário que o carro geralmente ocupa, sem gerar longos conflitos que se arrastam.

Na minha visão, a capital deveria iniciar um sistema tarifa zero com linhas superlocais, com foco na mulher e no idoso. Na mulher, porque, como já é de conhecimento do campo progressista, existem uma série de atividades que são desempenhadas, envolvendo tanto pico quanto vale, geralmente dentro do bairro. Tanto a mulher quanto o idoso sofrem com qualquer deslocamento que não seja aquele para o qual os sistemas foram desenhados historicamente, que é o radial casa⟷trabalho

Acredito que um piloto com linhas superlocais poderia ser excelente, se muito bem-feito e, paralelamente, deveria ser feito um esforço, pagando salário, não esperando boa vontade, pelas ONGs (organizações não governamentais) e mandatos progressistas, para que a pauta da tarifa zero com maior abrangência pudesse ser pressionada de forma robusta, puxando as dependências necessárias para escalar.

Estou falando de linhas superlocais, pois como também deve ser de conhecimento de quem está lendo, a capital subdivide o sistema em dois: local e estrutural. O local, geralmente faz papel de alimentador, ficando subordinado aos troncos radiais, que envolvem tanto o estrutural, quanto o sistema de trilhos, contudo, mesmo o local sendo teoricamente local, ele não consegue fazer isso adequadamente, infelizmente.

Sou usuário de longa data da Linha 3763-10, que, como pode ser atestado por meio de dados públicos da SPTrans (São Paulo Transporte), tem estado entre as 100 linhas mais movimentadas do município (considerando os anos de 2019, 2020 e 2021) e, por conseguinte, deve ser uma das mais movimentadas do continente latino-americano também. Minhas preocupações não são mero capricho teórico. Organizações não governamentais podem facilmente extrapolar a capacidade/hora atual, pensar num determinado patamar de demanda reprimida e simular. Da minha parte, como planejador e idealizador do COMMU, eu tenho certeza de que ela não dará conta. E é o que vai acontecer no sistema todo: não vai dar conta, podendo condenar totalmente uma política de tarifa zero, caso ela não seja parte de um guarda-chuva com considerações mais cuidadosas.

Legenda: Interior de um ônibus da Linha 3763-10 no horário de vale, às 16h27 de 19/08/2022

No momento, eu só vejo um mérito no anúncio do governo municipal paulistano, que é tensionar o tecido midiático. Quem tem espaço na mídia precisa considerar o que vai falar. Creio que não é uma questão de um SIM ou de um NÃO, nos termos colocados pela Folha de São Paulo.

Finalmente, não estou fazendo “fogo amigo”. Eu estou reagindo como sempre reajo: sinto que é uma ameaça e externo minhas preocupações. Se você entendeu minhas colocações como uma ofensa, lamento, não sei me expressar de forma mais amena e educadinha, mas garanto que ler meus artigos dói muito menos do que ser condenado a uma vida de humilhação nos nossos transportes públicos. Eu só quero ser respeitado.




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