Nada contra Paris, mas a São Bernardo do Campo chego de ônibus

Por Caio César | 10/02/2024 | 5 min.

Legenda: Movimentação na Avenida Kennedy às 21h de 05/02/2024, com destaque para a passagem de um ônibus de piso baixo no sentido Rudge Ramos e a presença de pessoas ao longo da ciclovia/pista de caminhada no canteiro central. Em segundo plano, um edifício de escritórios com comércio no térreo
Por que falamos tão pouco sobre nossas cidades? Por que os assuntos mais repercutidos aparentam a profundidade de um pires de cozinha e a dimensão de uma ervilha?

Há alguns dias, voltei a me deslocar diariamente para São Bernardo do Campo[1] e, ao longo de uma semana, suspeito que já acumulei material suficiente para fomentar discussões por meses, escrevendo artigos, publicando no Instagram, dialogando internamente com outros membros no Telegram, etc.

E é sobre isso que eu gostaria de falar, sobretudo, para alfinetar o que parece um curioso “processo de filtragem”, deliberado ou não, que reproduz ou escancara profundas contradições de classe. Em outras palavras, eu gostaria de problematizar “nossa vizinhança” mais uma vez, pois uma parcela da militância — aquela de renda mais elevada — enxerga Paris, mas não sabe como chegar a São Bernardo do Campo de ônibus. Na minha opinião, o debate está sendo contaminado.

Nossa “vizinhança ativista”, claramente, é composta por um punhado de indivíduos de classe média, no mínimo. Eu arriscaria dizer que muitos deles são de classe média alta ou classe alta, com estrutura familiar extremamente privilegiada. Por que este grupo romantiza Paris, mas não consegue nos acompanhar quando falamos dos trens da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos)? Mais uma vez, suspeito que comparações rasas e perigosas continuam sendo feitas, resultando numa leitura distorcida do território.

Eu não traçarei comparações com Paris, independente da profundidade da política envolvendo restrições para veículos utilitários esportivos, vulgo, tanques de guerra glorificados. Minha recusa não se baseia meramente no fato de que eu não vivo e provavelmente nunca viverei em Paris, mas por continuar insistindo em qualificar o debate a partir do cotidiano fático das populações da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo). Precisamos aprender a extrair bons e maus exemplos “dentro de casa”.

Antes da pandemia, tínhamos cerca de 3 milhões de usuários do Trem Metropolitano da CPTM e cerca de 5 milhões de usuários do Metropolitano de São Paulo. É sabido que parte da demanda é compartilhada, mas é fato que o sistema metroferroviário transporta milhões de pessoas, estando inserido numa região com mais de 20 milhões de habitantes. Será que com 20 milhões de habitantes, a discussão precisa começar por Paris!?

E não estou sendo exagerado! Enquanto escrevo, a ampulheta da privatização da Linha 7-Rubi (Brás-Jundiaí) despeja areia em ritmo acelerado. Nosso tempo está acabando. Vamos condenar não apenas a porção mais pobre da linha, localizada a noroeste, mas também a porção mais rica, atendida pela Linha 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra), uma vez que a operação unificada, conhecida como Serviço 710 (Rio Grande da Serra-Jundiaí), será inviabilizada.

Não, 2024 não começou e não terminará bem. Centenas de milhares de periféricos, independente do que pensam ou de como votam, terão seu futuro acorrentado a um contrato longo e traiçoeiro entre governo do estado e iniciativa privada. Imaginamos que não seja segredo para ninguém: não haverá oposição contundente. O governo federal investirá recursos da controversa nova versão do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), excessivamente focada em obras com baixa relevância para estabelecer uma trajetória positiva para nossos principais tecidos urbanos.

São Bernardo do Campo, que mencionei na introdução deste artigo, está no que poderíamos chamar de “área de atendimento indireto” ou “área de influência indireta”, já que a Linha 10 é alimentada por uma série de linhas intermunicipais que atendem o município. Ainda que São Bernardo do Campo não seja um “endereço óbvio”[2], abriga equipamentos públicos e relevantes tecidos comerciais e de serviços. O eixo da Avenida Kennedy, no trecho compreendido entre a Avenida Antártico até o encontro com a Avenida Senador Vergueiro, por exemplo, é um caso típico de tecido urbano de classe média com níveis suficientes de complexidade para merecer atenção “nível Paris”.

Legenda: Parque Raphael Lazzuri, na Avenida Kennedy. Fotografias tiradas por volta das 21h de 05/02/2024

Infelizmente, a atenção recebida tende à nulidade, mesmo abrigando um parque e um pequeno conjunto de bares e restaurantes, que se somam a um shopping center e outros estabelecimentos comerciais. A inserção peculiar, entre dois pontos que facilitam a conexão com a capital paulista (por meio das estações Sacomã, Santo André e São Caetano do Sul) a partir de dois conjuntos distintos de linhas ônibus intermunicipais (linhas regulares e linhas do Corredor Metropolitano ABD), também contribui para reforçar minha provocação.

Como venho discutindo internamente, alguma coisa está errada na forma de fazer ativismo ou de militar. Conversando com um pesquisador do LabCidade[3] recentemente, concordamos que existe um mercado de causas sociais. Pessoas e problemas dolorosos da região metropolitana estão sendo transformados em matéria-prima para alavancar projetos pessoais de poder e prestígio, dentro e fora da iniciativa privada. Em poucas palavras, alpinismo social nas costas de todos nós.

O remédio para quem não se sente representado é amargo: precisamos de mais gente e, não só! Precisamos de mais gente que não tenha medo de perder muito tempo, gastar muito dinheiro e não ganhar absolutamente nada em troca! Precisamos de gente que aproxime o debate da São Paulo da maioria, que não é assunto, mas continua sendo essencial para que milhões morem, trabalhem, estudem e se divirtam, num entrelaçamento delicado de riqueza e pobreza.

Se a alienação não for rompida, será muito difícil avançar em qualquer causa social sem retroalimentar o mesmo mercado de ativismo. Infelizmente, eu e outros membros do COMMU não temos bolsos suficientemente profundos para torrarmos dinheiro com nossas ideias. Seria lindo se tivéssemos, mas não temos. Precisamos de mais gente disposta a questionar o buraco em que estamos todos metidos.

Finalmente, se a alienação continuar sendo regra, o debate continuará falando muito de Paris com pouca profundidade, enquanto nossos trens são privatizados e precarizados, nossas tarifas continuam subindo e nosso déficit habitacional segue longe de ser sanado. Já tivemos de tudo nos últimos anos: repetidas reportagens sobre bondes que dispensam trilhos; reportagens sobre um trem monstruoso chinês (que não passou de um golpe); e comparações estapafúrdias com Nova Iorque

[1] Caminhando e utilizando transporte público.

[2] Para emprestar um rótulo do mercado imobiliário, que extraí de uma reportagem de outubro de 2023 sobre a vacância de escritórios em Alphaville.

[3] Não vou citar seu nome para preservá-lo.




Se você ainda não acompanha o COMMU, curta agora mesmo nossa página no Facebook e siga nossa conta no Instagram. Veja também como ajudar o Coletivo voluntariamente.



comments powered by Disqus