A quem interessa o desmonte da rede noturna?

Por Richard Melo | 16/01/2022 | 8 min.

Legenda: Terminal Sacomã
Ao invés de prejudicar a rede noturna, a prefeitura deveria desenvolver novas formas de financiamento, que possibilitem diminuir a pressão sobre o orçamento geral sem prejudicar o serviço público

Índice


Introdução

Em 2015 a prefeitura de São Paulo anunciou a criação de uma rede de ônibus noturna que contemplaria praticamente toda a cidade, em substituição às linhas isoladas que existiam até então. A medida foi um grande avanço para o transporte público da capital, que possui uma vida noturna agitada mas que até aquele momento carecia de um transporte bem articulado durante as madrugadas. O atendimento dava-se por algumas linhas isoladas e pouco articuladas, como a famigerada 3310-10 (Terminal Amaral Gurgel-Terminal Cidade Tiradentes), apelidada de “Rainha da Noite” e conhecida por ser a maior linha da cidade. A rede de ônibus noturna também atendeu parcialmente a demanda de “metrô 24 horas” ao incluir serviços paralelos às ferrovias. O funcionamento de linhas de metrô ininterruptamente, pedido por várias pessoas, é inviável com a estrutura atual.

As linhas da rede noturna possuíam o mesmo padrão de atendimento: intervalos de 30 minutos para linhas locais, que ligam os bairros a terminais e estações, e de 15 minutos para linhas estruturais, que ligam os terminais da cidade e atendem as estações metroviárias, com exceção da Linha 5-Lilás. Em razão das características dessa rede, a mesma era remunerada de acordo com a quilometragem rodada, e não por passageiros, o que garantiria o atendimento padrão independente da demanda, que pode ser bem reduzida em alguns trajetos. Com essa configuração, a rede noturna conseguia atender a necessidade de deslocamento dos usuários, e não apenas interesses econômicos dos operadores.


Estagnação e enxugamento

Apesar da inovação, a rede ficou estagnada nos anos seguintes. A linha N801-11, que deveria ser a alternativa à Linha 4-Amarela, até hoje cumpre o trajeto entre a Estação Butantã e o Terminal Parque Dom Pedro II, a despeito da expansão da linha ferroviária até SP-Morumbi e, recentemente, Vila Sônia. A linha local mais próxima das novas estações, N842-11 (Terminal Pinheiros-Cohab Raposo Tavares), atende apenas a Avenida Eliseu de Almeida, enquanto as estações localizam-se na Avenida Professor Francisco Morato. O mesmo ocorreu no eixo da Linha 5-Lilás, que na época atendia o trecho Capão Redondo a Adolfo Pinheiro, mas hoje já chega a Chácara Klabin. Nenhuma linha estrutural foi criada ou adaptada para suprir esse eixo no período noturno e a linha local N731-11, que atende algumas estações entre Campo Limpo e Largo Treze, opera com intervalos de uma hora.

Além da falta de evolução, após alguns anos a rede começou a sofrer intervenções que eram motivos de preocupação. Em 17 de agosto de 2017, a Rede Brasil Atual publicava a seguinte matéria: “Gestão Doria extinguiu 51 linhas de ônibus e reduziu atendimento em 29 desde janeiro”. Uma das linhas extintas citadas na matéria era a N338-11, que ligava a Estação Guaianazes da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) com o bairro do Lajeado, no extremo leste da cidade. Nenhum outro serviço foi criado ou alterado para suprir o bairro em questão, que deixou de ser atendido no período noturno. No dia 19 do mesmo mês, Sérgio Avelleda, então secretário de mobilidade e transportes, afirmou em um encontro com influenciadores digitais que “quando a gente pensa em mexer na rede noturna é porque estamos sufocados com o valor [do custo] por passageiro, que custa três vezes mais caro transportar na rede noturna do que na rede do dia”, dando sinais de que o sistema seria “enxugado” por motivos financeiros.

Em 2 de abril de 2019, o mesmo veículo divulgava que “Gestão Covas reduz partidas de ônibus de linhas noturnas sem avisar usuários”. A matéria mostrava que diversas linhas do serviço noturno tiveram seu atendimento reduzido, sem qualquer aviso prévio aos usuários e sem nenhum critério explícito:

Desde o início do ano, a gestão do prefeito da capital paulista, Bruno Covas (PSDB), reduziu o número de ônibus que atendem 37 linhas noturnas de todas as regiões da cidade. Com isso, 23 linhas que ligam terminais – sistema estrutural – tiveram redução de uma partida por hora (de 17 para 13 partidas) e aumento no tempo de espera de 15 minutos para 20 minutos. Outras 14 linhas que ligam terminais aos bairros – sistema local – tiveram aumento no intervalo de saída de 30 minutos para 40 minutos, caindo de nove para sete partidas por noite As alterações não foram publicadas nos Informativos Operacionais nem no Jornal do Ônibus.

Ao ser consultada, a prefeitura alegou que as mudanças ocorreram para adequação à demanda. Também alegou que as mudanças impactaram poucas linhas do sistema, cerca de 25%:

A SPTrans informa que algumas linhas noturnas tiveram ajustes em suas programações horárias de viagens, em virtude da consolidação do número de passageiros transportados desde a sua implantação. Das 150 linhas do Noturno, somente 37 tiveram ajustes na sua programação. A rede noturna apresenta 98% no cumprimento e pontualidade das viagens programadas.

A postura da SPTrans (São Paulo Transporte) é, no mínimo, preocupante, pois levando em conta a demanda das viagens, provavelmente muitas linhas poderiam simplesmente serem suprimidas, acabando com possibilidades de deslocamento. A rede noturna, da forma como foi estruturada, deveria servir para garantir o serviço, e dessa forma o padrão de atendimento não pode depender da demanda. Ajustando os serviços de acordo com a demanda, há o risco de garantir atendimento em apenas alguns eixos mais “badalados” e prejudicar diversas regiões, especialmente periféricas, que deixariam de ter atendimento. Ademais, durante a madrugada, os passageiros tendem a sofrer mais com a sensação de insegurança, especialmente nos pontos de ônibus, surgindo mais um fator de desestímulo ao transporte público.


Cenário atual

Legenda: Rede do Noturno (dados extraídos programaticamente às 13h10 de 16/01/2022)

Com o advento da pandemia de COVID-19, a situação piorou. Em diversos momentos o poder público restringiu as atividades no período noturno, o que afetou a demanda da rede noturna. Atualmente (janeiro de 2022) as atividades estão liberadas, mas o nível de atendimento das linhas noturnas encontra-se bastante reduzido. Como exemplo, podemos citar as linhas N507-11 e N639-11. A primeira trata-se de uma linha estrutural, que inicialmente ligava o Metrô Santana ao Terminal Sacomã, mas teve o itinerário encurtado em maio de 2019 para o Terminal Vila Prudente. Seu intervalo era de 15 minutos, foi alterado para 20 minutos em 2019 e hoje varia de 30 minutos a uma hora. Já a linha N639-11 é uma linha local, que liga o Terminal Grajaú ao bairro Vargem Grande, no extremo sul. Pelo padrão inicial ela tinha intervalo de 30 minutos, mas hoje conta com apenas três viagens esparsas: 00h00, 01h45 e 04h00. Um morador de Vargem Grande que saia um pouco mais tarde de algum bar na Augusta e só tenha o transporte público como opção provavelmente só chegaria em casa às 04h30, precisando aguardar boas horas no terminal.

Através do e-SIC (Sistema Eletrônico de Informação ao Cidadão) da Prefeitura de São Paulo, foram feitos os seguintes questionamentos à SPTrans: “Como a SPTrans está monitorando as linhas noturnas e quais parâmetros foram adotados para adequação da tabela horária, conforme o relaxamento das medidas restritivas? Há alguma previsão para que as linhas voltem às tabelas padrão, que vigoraram até 2019?”. A resposta do órgão foi a seguinte:

Em atenção ao solicitado, informamos que a SPTrans, sob coordenação da SETRAM, vem seguindo as diretrizes dos Governos Municipal e Estadual em atendimento aos decretos que tratam da situação de emergência deflagrada pela pandemia de COVID-19.

Estão sendo realizados acompanhamentos sistemáticos na operação das linhas de ônibus e na demanda de passageiros, sendo que, no mês de março de 2020 houve uma redução abrupta na demanda de passageiros que atingiu 75% no dia 31 de março daquele ano. Em contrapartida à extensiva queda na demanda de passageiros, desde o início do estado de emergência a circulação de veículos manteve-se acima de 38% em relação ao dia útil.

Com isso, também a Rede Noturno sofreu alterações e variações durante o período pandêmico, sendo as linhas programadas conforme o tempo de ciclo individual de cada serviço, visando propiciar a manutenção do atendimento pela rede.

Quanto ao monitoramento continua exercido pelo SIM - Sistema Integrado de Monitoramento, o mesmo pode ser acompanhado por diversos APP’s de ajuda aos usuários que mostram a localização dos coletivos e auxiliam na programação dos seus deslocamentos, minimizando o tempo de espera nos pontos de parada. Dentre tais aplicativos destacamos MOOVIT, CADÊ O ÔNIBUS e CITTAMOBI, entre outros, além da própria visualização pelo site da SPTrans: https://olhovivo.sptrans.com.br/.

Não há previsão de retorno à operação da Rede Noturno nos padrões anteriores, enquanto perdurar a situação e agravamento da pandemia.

Atenciosamente,

Lúcia Helena Rodrigues Capela

Chefe de Gabinete da SPTrans

Apesar de longa, a resposta não explica os critérios adotados para a reprogramação do serviço noturno, e deixa em aberto uma data para retorno dos padrões pré-2019. O cenário atual dá a impressão que a prefeitura se aproveitou do momento da pandemia para enxugar ainda mais a rede e dessa forma diminuir os subsídios necessários para a manutenção do serviço.


Conclusões

O financiamento do transporte público é um tema de muita importância, mas que é pouco debatido, tanto pela grande imprensa quanto por sites especializados. Atualmente o financiamento ocorre principalmente pela tarifa pública, paga pelos usuários, com algum subsídio complementar. Esse modelo encarece a tarifa, gerando exclusão e um círculo vicioso, pois aumentos de custos são repassados para os usuários, que podem deixar de utilizar o sistema, consequentemente deixando de injetar dinheiro no sistema, levando a aumento relativo dos custos. Ao invés de prejudicar a rede noturna, a prefeitura deveria desenvolver novas formas de financiamento, que possibilitem diminuir a pressão sobre o orçamento geral sem prejudicar o serviço público.

Ao aumentar os intervalos das linhas, o poder público piora o serviço e contribui para a migração de passageiros aos transportes individuais, incluindo os fornecidos por aplicativos. A lógica mercadológica que rege o transporte coletivo em São Paulo já é um desafio para a qualidade da mobilidade urbana nos períodos diurnos, mas aplicada à rede noturna é ainda mais nociva, pois afeta principalmente moradores de áreas periféricas e restringe ainda mais as possibilidades de lazer desse público, causando uma segregação no acesso à vida noturna da cidade, além de expor os passageiros a maiores riscos, em um cenário de (in)segurança pública comum nas cidades brasileiras.


Colaborações: Caio César (elaboração do mapa das linhas)



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