Num xadrez marcado por egoísmo e anseios autoritários, editorial do Estadão parece ironia

Por Caio César | 27/12/2023 | 4 min.

Legenda: Passageira da Linha 7-Rubi (Brás-Francisco Morato-Jundiaí) observa edifícios de alto padrão no Jardim das Perdizes, entre as estações Água Branca e Palmeiras·Barra Funda
Sim, o resultado do processo de revisão do zoneamento paulistano é desastroso, mas foi produzido pela disputa de antagonistas dispostos a perpetuar uma cidade desigual, violenta, estruturalmente racista e rodoviarista

O artigo a seguir é uma adaptação de duas sequências de posts no X, feitas em 25/12/2023 e 21/12/2023 pelo nosso membro Caio César.

Chega a ser irônico evidenciar a publicação do editorial “Descaso com a cidade de São Paulo” pelo Estadão, jornal que, alertando contra “aventureiros”, sugeriu o voto no atual governo municipal em 2020, entretanto, mais do que a ironia do destino, o texto também une esquerda e direita reacionárias e privilegiadas.

Mais uma vez, pagamos o preço entre a disputa de dois campos: (i) incorporador preguiçoso; e (ii) o herdeiro sem escrúpulos. Em relação às declarações de arquitetos e urbanistas como Nabil Bonduki, como a publicada no X (antigo Twitter) em 21 de dezembro, só resta lamentar. E que fique claro: Nabil, você e outros profissionais da arena urbana jamais poderiam ter se aliado com associações reacionárias de bairros “nobres” e centrais. Essa gente pariu a periferia, induziu sua expansão e ainda mata quem nela nasce.

Enquanto não existir honestidade para discutir o que significa um perímetro ser perto ou longe dos eixos de transporte público (sinônimo de corredores de ônibus e estações do sistema de trilhos), o debate não possuirá condições para ser iniciado com razoabilidade. Um debate sério…

  • Utilizaria isócronas de tempo com perspectiva intermodal;
  • Consideraria moradias insalubres como parte do deficit;
  • Não toleraria a captura de nascentes, ignorando o que acontece com mananciais e vegetações nas franjas;
  • Não uniria MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e gente que trata parcelas do Alto de Pinheiros como “ecobairro”;
  • Não atrofiaria a ideia de “capacidade de suporte” à escala hiperlocal, ignorando o tamanho de São Paulo e sua influência na região metropolitana e na macrometrópole.

Enquanto a participação popular for resumida a endinheirados do Centro Expandido, com sua importância sendo cinicamente ampliada aos excluídos do processo, conforme os interesses em jogo, o debate não possuirá condições para ser iniciado com razoabilidade.


Se quisermos falar sobre densidades, salientemos que as maiores não estão nos bairros verticais. Estão, sim, nos territórios populares. Aliás, essas formas de construir nos bairros populares, extremamente densas, é que deveriam ser objeto de reflexão sobre que urbanismo queremos e como, a partir de suas lógicas, poderíamos ter outras qualidades urbanísticas e arquitetônicas.
Triste exemplo de tokenização de favelas, em fragmento da problemática peça de opinião “A falácia da verticalização”, publicada em 2021 na Folha de S.Paulo

A votação foi do jeito que foi porque, no fundo, envolveu antagonistas autoritários e egoístas, reforçando como nossos mandatos possuem baixa capacidade técnica, predileção ao populismo na medida que for necessária e representatividade pequena e pouco escrutinada. Nossas periferias jamais foram realmente convidadas para serem cidadãs nesse debate, pois se dominassem a técnica, não se sujeitariam a uma intelectualidade dobrada a herdeiros, não se sujeitariam à tokenização para valorizar retóricas falso-moralistas. As periferias pagarão o preço e não foram representadas.

Como alguém que trilha uma árdua caminhada há mais de dez anos, grande parte dela resultando em diferentes artigos para este Coletivo, eu me recuso a participar desse circo. Enquanto sou refém dos principais antagonistas, sigo precisando de condições melhores para conseguir morar e trabalhar. E aposto que não estou sozinho! Se alguém acha normal tratar a maior parte da cidade como um subúrbio de prédios baixos, porque 800 metros de distância de uma estação é “longe demais”, mas 600 metros não, eu discordo.

Como talvez seja perceptível ao acompanhar minha produção textual, comecei a subir o tom dadas as concessões que destroem a saúde do Metrô (Companhia do Metropolitano de São Paulo) e da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), além de degradarem linhas inteiras. Antes, eu pensava “beleza, votarei com os pés, vou morar na região metropolitana e me deslocarei com a CPTM”, mas os tempos mudaram (com apoio do Estadão e omissão da esquerda).

Outra ironia é que a pilantragem ligada à apresentação de um novo substitutivo em questão de poucas horas, sem diálogo e sem participação, entre outros problemas, é só a continuação dos movimentos subversivos que ficam cooptando nascentes, tombamentos, noções de “caráter” de vizinhança, pobreza, entre outros conceitos, para servir a interesses próprios.

Enfim, fomos derrotados porque quem conduziu o debate passa mais tempo em aeroportos do que em trens da CPTM — mesmo aqueles que, supostamente, são progressistas. São Paulo expulsa até as classes médias para preservar um Centro Expandido com imensas áreas de baixa densidade. Lamentável.


Colaborações: Lucian De Paula, autor do penúltimo parágrafo, adaptado a partir de um comentário no X



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