Folha de S.Paulo acerta em podcast e proporciona reflexões indispensáveis sobre transporte público

Por Caio César | 25/07/2020 | 6 min.

Legenda: Idosa embarca com dificuldade em ônibus da linha 3053-10 (Jardim Itápolis-Metrô Belém). Visível numa das folhas da porta, o valor da tarifa: R$ 4,40
Jornalistas abordam gargalos e desafios do transporte público durante a pandemia do coronavírus. A iniciativa, louvável e necessária, ensejou considerações por parte do COMMU. Confira

Índice


Contextualização

Além do reforço positivo com relação à defesa de pedágio urbano e da priorização da circulação dos ônibus no sistema viário, gostaríamos de destacar uma edição recente do podcast Café da Manhã da Folha de São Paulo, que abordou o transporte público no pós-pandemia.

O podcast, que logo de início se destaca por construir uma atmosfera semelhante àquela encontrada num ônibus lotado, foi permeado por reflexões e informações trazidas pelos repórteres Artur Rodrigues e Thiago Amâncio. A partir delas, este Coletivo gostaria de, humildemente, aprofundar e trazer outros pontos para enriquecimento de dois aspectos do debate.


O pacto federativo no centro do debate

Ainda que talvez de forma indireta, nosso modelo federativo foi um dos aspectos mais fortes do episódio, uma vez que estados e municípios alegam não possuírem recursos suficientes para subsidiarem seus sistemas de transporte público. Em alguns casos, como na maioria dos municípios da RMSP (Região Metropolitana de São Paulo), além do transporte intermunicipal regulado pela EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos) e Artesp (Agência de Transporte do Estado de São Paulo), não há subsídio: a tarifa, paga pelos passageiros, é a principal responsável por garantir a sustentabilidade da operação e ainda proporcionar lucros aos concessionários ou permissionários envolvidos.

Como é de se imaginar, com a redução no número de passageiros, como parte da flexibilidade que algumas categorias de trabalhadores possuem, em pouco tempo a prestação de serviços começou a ser corroída pela redução das receitas, chegando, em alguns casos, a ter sua viabilidade questionada. No Rio de Janeiro, a concessionária da parcela mais malfadada da rede de trilhos, SuperVia, anunciou que pode paralisar a operação já em agosto. A operação do Metrô Rio também pode parar em agosto e acumula prejuízo de R$ 150 milhões. Ao Diário do Transporte, a NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos) sentenciou que metade das empresas quebrarão e sairão do sistema no pós-pandemia. Em São Paulo, a Companhia do Metropolitano (METRÔ) começou a avaliar desligar elevadores e diminuir a limpeza, além de ter anunciado que vai reduzir salários na noite da última sexta-feira, 24, surpreendendo até mesmo o sindicato da categoria.

A delicadeza do cenário reacende discussões sobre o modelo de financiamento, o que direciona os holofotes para o governo federal, que não só deixou de ajudar na coordenação e assessoria técnica, com o desmonte da EBTU (Empresa Brasileira de Transportes Urbanos, extinta em 1991) e do GEIPOT (originalmente Grupo Executivo de Integração da Política de Transportes, extinto em 2008), como também não criou nenhum tipo de fundo, mesmo após a reconfiguração do pacto feita pela Constituição Federal de 1988, fortemente municipalista em resposta à centralização excessiva da ditadura. Passadas três décadas, os municípios ainda não possuem o devido apoio para seus sistemas de transporte coletivo, entretanto, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 2025/2020, que “institui o Programa Emergencial Transporte Social visando resguardar o exercício do transporte público rodoviário urbano e semiurbano, durante o período de enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020”.

O estrangulamento das receitas, desafiando o modelo neoliberal de operação dos transportes, aquele provavelmente familiar de todos e todas nós, consistindo em um ou mais atores privados em conjunto com o estado, com este último se limitando ao papel de regulador e subsidiador (quando muito), não só nos obriga a rediscutir o financiamento, mas também mostra o quanto o pacto federativo continua fragilizado e foi deixado refém de uma postura antiestatal. Entidades como o Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), felizmente, contribuiu para a qualificação do debate com a apresentação do estudo “Financiamento Extratarifário da Operação dos Serviços de Transporte Público Urbano no Brasil”. O estudo calcula que a quantia de R$ 70,8 bilhões (ou 1% do Produto Interno Bruto) seria suficiente para implementar tarifa zero nacionalmente.


Subsídio cruzado

Outro aspecto importante para tornar o financiamento do transporte público mais robusto envolve o indigesto tema da tributação. Os repórteres citaram a municipalização da CIDE, defendida por Carlos Henrique Carvalho do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), bem como por outras entidades e Fernando Haddad (PT), ex-prefeito de São Paulo, além da taxação de sistemas pouco regulados de serviços de carona remunerada, como já fez a capital paulista com o Decreto 56.981/2016. Em 2013, a FGV (Fundação Getúlio Vargas) previa que aumentar a gasolina em R$ 0,50 poderia reduzir a tarifa de ônibus em R$ 1,20.

Há ainda a possibilidade de taxar o carro progressivamente, desestimulando sua utilização conforme espaço ocupado e motorização, racionalizando não só o carro em si, mas também subsidiando cruzadamente o transporte público. Trata-se de uma possibilidade recentemente defendida por Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes da capital paulista da gestão Luíza Erundina (então PT, hoje PSOL).

Como já apontado, os repórteres alertaram para a ausência de subsídio na maioria dos sistemas de transporte brasileiros. São Paulo (capital) é uma das maiores exceções e, segundo o TCM (Tribunal de Contas do Município), repassou 287 milhões de reais em abril, representando um aumento de 34% em relação ao mês de março. É evidente que o subsídio, apesar de positivo, não é suficiente para driblar a lógica neoliberal e esgarça o erário.

Nós do COMMU costumamos levantar a hipótese de que os passageiros das viagens curtas, que contribuem para subsidiar as viagens longas, são uma fonte de receita que está cada vez mais ameaçada pelos serviços sob demanda, que comumente são vistos como um concorrente mais barato dos táxis, ou seja, uma fonte interna de subsídio cruzado tem minguado e pode continuar minguando ainda mais com o lobby que já está tentando viabilizar a operação de ônibus sob demanda na capital paulista. Defendemos recentemente que parte das justificativas e expectativas em torno do transporte sob demanda poderiam ser melhor acolhidas com a transformação da infraestrutura de transporte sobre trilhos.

Falar em infraestrutura, como bem lembrado pelos repórteres, é difícil, pois mesmo os corredores de ônibus acabam custando caro e não foram feitos no cenário anterior à pandemia. Para piorar, o transporte sobre trilhos, que no contexto da Região Metropolitana de São Paulo, que também, exige subvenções estaduais para a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e as linhas concedidas à CCR (como 4-Amarela e 5-Lilás) e tem perdido investimentos. Prevê-se um montante de recursos 10,5% menor em 2020 em comparação com 2019.


Conclusão

O objetivo deste artigo foi traçar um panorama a partir dos comentários feitos no podcast do jornal paulistano. Acreditamos que é urgente a definição de uma agenda para socorrer os sistemas de transporte público e garantir investimentos e modelos de financiamento mais racionais e contínuos, que reduzam o abismo entre os investimentos voltados ao transporte individual motorizado e o transporte público. Temos plena certeza de que melhores sistemas de transporte público, combinados a intervenções urbanas voltadas aos modos ativos, como a caminhada e o ciclismo, produzirão cidades mais resilientes e saudáveis. Há quem já esteja defendendo que deveria existir um “SUS no transporte público”.




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