Choradeira envolvendo cancelamentos de viagens em apps como Uber e 99 retrata uma classe média que não se importa com ônibus e trens

Por Caio César | 19/09/2021 | 6 min.

Legenda: Van sob demanda da plataforma UBus passa pela Avenida Senador Vergueiro, em São Bernardo do Campo
Crescem as reclamações com a insubordinação de motoristas, que se recusam a operar no prejuízo, mas transporte público, mesmo de caráter seletivo ou hiperlocal, ainda não ganhou espaço nas discussões

Se considerarmos como classe média as famílias com renda mensal per capita, ou seja, por pessoa, numa faixa que se inicia em R$ 667,87 e termina em R$ 3.755,76, a exemplo do que fez o Instituto Locomotiva no primeiro semestre, talvez não seja um exagero levantar a hipótese de que, pelo menos os extratos mais altos dessa faixa, com renda superior a 1 ou 2 salários-mínimos, abrigam parte relevante da clientela de serviços de ride-hailing, como Uber e 99.

Sabemos que, pelo menos, uma pesquisa indicava que o Twitter era especialmente utilizado pela população de maior poder aquisitivo em 2017. Assim, não é surpreendente encontrar reclamações recorrentes sobre uma “queda de padrão”, incluindo ameaças de “voltar a utilizar o carro” ou a triste constatação de “precisar voltar a se sujeitar ao transporte público”, que surgem mesmo em perfis de pessoas que se autodeclaravam moradoras da capital paulista.

E, com isso, é muito difícil não sentenciar que a classe média não está preocupada com o transporte público coletivo que tem peso nos deslocamentos da maioria, ou seja, ônibus e trens, ou pelo menos, não está preocupada até perceber que não vai conseguir pagar por um táxi comum e nem continuar expiando a culpa de alimentar a superexploração de motoristas utilizando algum atravessador tecnológico. Aliás, 60% dos clientes estão migrando de volta para os táxis, talvez os que possam pagar ou estão abertos a mudanças.

Chegamos a encontrar, na nossa página do Facebook, comentários condenando a implantação de um trem regional (também chamado trem intercidades) entre São Paulo, Jundiaí e Campinas. O motivo alegado foi de que a tarifa precisaria ser capaz de competir com a de outro atravessador tecnológico, que não utiliza rodoviárias, não possui obrigatoriedade de atender a princípios de universalidade e não possui obrigatoriedade de oferta regular de viagens. Ou seja, mesmo que a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) ou a futura concessionária do serviço cobrasse uma tarifa próxima daquela cobrada pelas viações reguladas pela Artesp (Agência de Transporte do Estado de São Paulo), na faixa dos R$ 30-40, ainda seria muito caro.

Ora, se continuarmos normalizando negócios que nadam em dinheiro de investidores de alto risco (venture capitalists) e podem praticar dumping (prática de operar abaixo do custo para quebrar concorrentes), inclusive preterindo a implantação de serviços ferroviários capazes de estimular uma integração regional mais sustentável, com trens elétricos confortáveis, previsíveis e regulares, estaremos, mais uma vez, condenando nosso desenvolvimento urbano e humano. E a prática de dumping só ocorre de forma generalizada porque toleramos a postura negligente de autoridades que, por cinismo ou ingenuidade, parecem acreditar estarem contribuindo para a manutenção de um ambiente saudável de livre mercado, quando estão dinamitando serviços essenciais e se esquivando de uma discussão qualificada e robusta do marco regulatório, principalmente diante do surgimento de tecnologias antes inexistentes.

E, que fique claro, nós do COMMU não estamos preocupados com a situação das plataformas de ride-hailing e somos defensores da tese de que estas contribuem para a erosão do transporte público, reduzindo as receitas com viagens curtas nas áreas mais dinâmicas e bem servidas pela malha, principalmente de linhas de ônibus. Sim, nós sabemos que os motoristas estão cancelando viagens num ritmo alucinado, mas a situação atual já era “pedra cantada” nos EUA. No Brasil, com o agravamento da crise econômica (leia-se: aumento vertiginoso pela inflação de custos) e a irredutibilidade das plataformas, que não querem elevar suas tarifas, o ônus ficou para o motorista, que filtra a maioria das viagens que considera pouco lucrativas, e para o usuário, que não tem garantias de conseguir viajar com um tempo de espera razoável.

A discussão precisa ir além dos serviços de ride-hailing e dar a volta até chegar na questão do transporte público seletivo, que apresenta um custo por km muito mais racional. Em São Paulo, viagens curtas de Uber custam o mesmo que realizar longos percursos nas linhas intermunicipais de caráter executivo, várias delas circulando com ônibus de bom padrão. O que alguns pagam para ir até um shopping ou outro ponto de interesse, seria suficiente para sair da rodoviária do Tietê rumo a Mogi das Cruzes. Também há grandes oportunidades em escala regional para o transporte sobre trilhos, que estão sendo desperdiçadas.

Justificativa Considerando as últimas discussões que realizamos internamente a respeito do transporte sob demanda, uma das possibilidades levantadas é a de que o modelo do fretamento (quando pessoas ou grupos de pessoas contratam um ônibus para se deslocarem entre pelo menos dois pontos, a partir de necessidades em comum) possui o espaço e a força que conhecemos, sendo onipresente na capital paulista, devido à situação da malha de transporte sobre trilhos.

Sendo realista, se considerarmos serviços como o controverso Metra Class, que interfere no Corredor Metropolitano ABD, com uma tarifa de R$ 7,50, a pessoa viaja com assento reservado em ônibus rodoviários de última geração, cujas poltronas são suficientemente confortáveis para fazer qualquer carro popular passar vergonha. Nunca foi tão confortável viajar entre os centros de Diadema, São Bernardo do Campo e Santo André. E sabe o que é melhor? Como o seletivo da Metra utiliza a infraestrutura do corredor, consegue evitar congestionamentos na maior parte do trajeto. É preferível ter mais seletivos como este, por mais controversos que sejam, do que incentivar ou fazer vista grossa para as plataformas de empresas como a Uber, 99 e Buser.

A prefeitura de São Paulo, ao interferir na operação dos ônibus executivos recém-lançados pela Metra, contribuiu para alimentar uma série de discursos supostamente favoráveis à inovação tecnológica, empreendedorismo e uma melhor mobilidade. Balela. Como falar de inovação num contexto de monopólios naturais, corporativismo faccional e captura do estado? Para tornar tudo pior, a comparação com a Uber em meio ao buzz que se formou, com sites de tecnologia publicando a respeito (vide aqui, aqui, aqui e aqui), foi uma espécie de tiro no pé da prefeitura da capital paulista, que mais uma vez assumiu o papel de vilão estatal.

A discussão precisa ir além dos serviços de ride-hailing e dar a volta até chegar na questão de quão importante seria oferecer linhas realmente locais, que facilitam o acesso ao comércio do bairro e pontos de interesse, tais como escolas e hospitais. Micro e midi-ônibus elétricos já são oferecidos pelo mercado e são perfeitos para isso. Outra opção interessante seria oferecer linhas expressas ou semi-expressas para conexão entre estações do sistema de trilhos. O COMMU fez uma proposta no Participe+ para que a SPTrans (São Paulo Transporte, responsável pelos ônibus municipais paulistanos) implantasse linhas hiperlocais e ela foi muitíssimo bem recebida por outros munícipes que participaram da última consulta pública para o Programa de Metas 2021-2024 e o Plano Plurianual 2022-2025.




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