UFABC: identificando problemas e possíveis soluções de mobilidade

Por Caio César | 02/06/2019 | 12 min.

Legenda: Interior de um dos ônibus fretados da empresa recentemente contratada pela universidade: padrão rodoviário exigido pelo marco regulatório resulta em baixa capacidade
A “universidade do século XXI” tem apostado em soluções segregacionistas de mobilidade coletiva, mas a receita parece ter atingido o esgotamento

Índice



Critico os condomínios por não criarem uma vida pública regulada por princípios democráticos, responsabilidade pública e civilidade.
(Teresa Pires do Rio Caldeira, Cidade de Muros, p. 277)

Introduzindo e contextualizando o assunto

Recentemente estive envolvido em discussões sobre a Universidade Federal do ABC (UFABC) e as ligações entre os campi e os municípios de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano. Até recentemente os alunos viajavam em pé utilizando um serviço de ônibus fretado que estava desrespeitando a legislação vigente, pois (i) permitia o transporte de passageiros em pé e; (ii) operava com veículos do tipo urbano de três portas.

A comunidade acadêmica acomodou-se e passou a alimentar receios típicos de não-lugares e das chamadas gated communities, termo utilizado para descrever comunidades de acesso controlado e fechadas em relação ao meio em que se inserem. O sistema de fretados, segregacionista e mais limitado do que nunca, como veremos a seguir, se tornou uma faca de dois gumes, ameaçando a permanência de alunos que moram em uma série de periferias.

Legenda: Mesmo operando com pelo menos dois ônibus urbanos e permitindo a permanência de passageiros em pé, a prestadora anterior ainda assim era incapaz de atender a demanda de estudantes

Tudo teria continuado em estado de letargia não fosse um detalhe: a empresa anterior foi substituída por outra, pois o contrato terminou e a universidade realizou um novo certame. A nova empresa adquiriu ônibus mais acessíveis (toda ônibus da frota com elevador), porém, foi categórica em deixar claro que seguiria a legislação, ou seja, não só a frota seria composta exclusivamente de veículos do tipo rodoviário de uma porta, como também seria vetada a permanência de passageiros em pé. Tudo isso ao custo de aproximadamente R$ 3 milhões.

Legenda: Slide 11 da apresentação utilizada na audiência sobre os fretados no mês de abril

Considerando que as aulas dos ingressantes tiveram início da segunda-feira, 27 de maio, bem como que as aulas dos veteranos terão início na segunda-feira, 3 de junho, decidi escrever as sugestões que tenho discutido não só no âmbito deste Coletivo, uma vez que temos alunos da universidade entre nossos quadros, mas também tenho discutido com pessoas de dentro e de fora da comunidade, incluindo familiares, colegas de trabalho etc.



[...] O muro, a portaria e a segurança constituem barreiras físicas e simbólicas que aniquilam os canais de aproximação, tornando a desigualdade ainda mais explícita e agressiva.
Dessa forma, aumentam a tensão, o medo e o ressentimento entre as classes, enfraquecendo progressivamente o interesse pela busca comum de soluções para os problemas sociais e urbanos.
(Mariana Falcone Guerra, Vende-se qualidade de vida: Alphaville Barueri — implantação e consolidação de uma cidade privada, p. 207–208)

Identificando problemas

Como discutido recentemente por este Coletivo, a mobilidade no Grande ABC enfrenta uma série de desafios. A Universidade Federal do ABC, pelo porte e importância que apresenta, surpreendentemente, não conseguiu até o momento motivar uma transformação positiva na mobilidade da região, o que é uma pena. Diante da redução na oferta de lugares dos fretados, que nunca foram um instrumento adequado para promoção do acesso a um equipamento público de extrema relevância, é oportuno, antes de tratar das sugestões e possíveis ações de mitigação, elencar os problemas que afetam a mobilidade no contexto da UFABC.

Problema 1: não há uma ligação competitiva entre São Bernardo do Campo e Santo André

A linha 432 da EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos) não possui trajeto compatível com a localização dos dois campi e as linhas do Corredor Metropolitano ABD, apesar da melhor regularidade e oferta, também possuem um traçado que dificulta a conexão entre os dois campi.

Problema 2: a ligação entre São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul não realiza a viagem em tempo suficientemente competitivo

Alunos que embarcam entre 22h30 e 23h, quando terminam as últimas aulas, devido ao tempo de viagem da linha 148, talvez não consigam realizar as todas as conexões necessárias depois de embarcar na Linha 10-Turquesa (Brás-Rio Grande da Serra) na Estação São Caetano.

Trata-se de um problema que pode afetar estudantes com destino às zonas Leste e Noroeste, que sofrerão com a impossibilidade de embarcar em uma das seguintes linhas: 3-Vermelha (Corinthians·Itaquera-Palmeiras·Barra Funda), 7-Rubi (Luz-Francisco Morato-Jundiaí), 11-Coral (Luz-Guaianazes-Estudantes) e 12-Safira (Brás-Calmon Viana) na Estação Brás ou de embarcar em linhas de ônibus da SPTrans após desembarcar em alguma estação das quatro linhas citadas, uma vez que as últimas partidas ocorrem entre 0h30 e 0h45 e nem sempre é possível contar com os ônibus noturnos, dada a quantidade reduzida de linhas.

Problema 3: os ônibus entre São Paulo e São Bernardo do Campo não atendem o campus de São Bernardo do Campo da UFABC de forma mais direta

Como veremos a seguir, existe um problema de inserção urbana que acaba motivando o desejo de caminhar o mínimo possível. No caso do campus de São Bernardo do Campo, o percurso mínimo é de 700 metros, exigindo uma caminhada entre o encontro das avenidas Kennedy e Senador Vergueiro em direção à portaria na rua Arcturus.

Problema 4: a inserção dos campi não é suficientemente convidativa

Os terrenos utilizados para construção dos campi, principalmente o terreno cedido pela Prefeitura do Município de São Bernardo do Campo, apresentam problemas de inserção, pois estão fora da escala humana. A comunidade acaba se sentindo insegura e pouco disposta a caminhar, ficando dependente do fretado para trajetos curtos, de aproximadamente 1 km de extensão — trajetos este que, diga-se de passagem, estão sendo desestimulados com a redução na oferta dos fretados.

Problema 5: vastas áreas foram dedicadas para estacionamentos sem cobrança e sem qualquer mecanismo de incentivo à carona

Mesmo com longas filas para embarque nos ônibus fretados, nem mesmo em dias chuvosos é comum ver alunos oferecendo carona, pior ainda, a impressão é a de que a maioria dos carros sai apenas com um passageiro abordo (o próprio condutor).

O espaço desperdiçado com um estacionamento que não cumpre com qualquer função social, uma vez que não dialoga com o perfil socioeconômico, é também um espaço contraditório, uma vez que conflita com noções de cidades para pessoas, que estimulam o uso de transporte coletivo (como ônibus e trens metropolitanos/metrôs) e de modos ativos (andar a pé e pedalar). Ironicamente a universidade possui três cursos cuja grade abre vastas oportunidades para problematização dos estacionamentos: Bacharelado em Políticas Públicas, Bacharelado em Planejamento Territorial e Engenharia Ambiental e Urbana.



O contexto do aumento da violência e de medo do crime fornece um campo fértil para que os estereótipos circulem praticamente sem censura. O medo gera um discurso no qual a discriminação social é moldada.
(Mariana Falcone Guerra, Vende-se qualidade de vida: Alphaville Barueri — implantação e consolidação de uma cidade privada, p. 208)

Discutindo e propondo soluções

A modificação de linhas de ônibus não é trivial, porque a EMTU nunca conseguiu licitar as linhas correspondentes à quinta área da Região Metropolitana de São Paulo. Toda a Sub-região Sudeste é refém de empresas permissionárias e o nível de serviço varia conforme a empresa. O único consórcio operacional é o da Metra, que opera exclusivamente no Corredor Metropolitano ABD.

Legenda: Tabela com algumas das linhas ligadas à problemática da UFABC, filtrada a partir de arquivo gerado no portal de dados abertos da EMTU
Legenda: Plataforma dedicada aos ônibus intermunicipais no Terminal Sacomã por volta das 19h30 do dia 14/05/2019

Como o Terminal Sacomã está saturado, uma vez que a EMTU não consegue racionalizar as linhas, qualquer modificação que signifique passar no campus de São Bernardo do Campus precisa ser pensada cuidadosamente. São as possibilidades:

  1. Criar uma derivação para as linhas troncais 153 e 154, que poderia partir de forma intercalada, numa proporção 1:1 (por exemplo, considerando a linha 154, a proporção corresponderia a uma partida da 154TRO, seguida de uma partida da 154DV1). Por limitações físicas, as partidas se dariam na mesma plataforma;
  2. Suprimir partidas do tronco no período de pico dos estudantes, substituindo-as por partidas da derivação, ou seja, em determinadas faixas horárias todas as viagens passariam pelo campus de São Bernardo do Campo. Por limitações físicas, as partidas se dariam na mesma plataforma.

Legenda: Proposta para a linha 432DV1 (ida e volta). Acessível também via Google My Maps

No caso da ligação entre Santo André e São Bernardo do Campo, há oportunidade para a modificação da linha troncal 432. Trata-se de uma situação mais favorável em relação às infraestruturas de terminais, porém, o traçado precisa ser alterado em mais de 5 km, pelo menos. São as possibilidades:

  1. Modificar a linha troncal, de forma que ela sempre passe no campus de São Bernardo do Campo na ida e na volta, adicionando cerca de 5 km a mais na viagem, mas mantendo o atendimento ao bairro do Taboão;
  2. Como a 432 precisa divergir na direção contrária, outra opção é criar uma bifurcação do tronco, na forma de uma 432BI1, que opere em determinadas faixas horárias, terminando na UFABC, de forma análoga à linha seletiva 280BI1, que termina na Cidade Universitária ao invés de seguir rumo ao centro de Osasco, como acontece com a linha seletiva 280;
  3. Considerar a opção 2, porém estender o percurso até o Terminal Metropolitano de São Bernardo do Campo, que se encontra subutilizado. Trata-se de opção que canibalizaria parcialmente a linha 53 da ETCSBC, operada pela SBCTrans (clique aqui para acessar a consulta de itinerários), porém, como há incompatibilidade dos sistemas de bilhetagem (a SBCTrans utiliza o cartão Legal, enquanto a EMTU utiliza o cartão BOM na Região Metropolitana de São Paulo), a alternativa pode ser considerada até que governo estadual e municípios acabem com a fragmentação e profusão de diferentes tipos de bilhetes, incompatíveis e desintegrados.

Legenda: Proposta para a linha 432DV1 (ida e volta). Acessível também via Google My Maps

Já a linha 148 poderia ser modificada para atender o campus de São Bernardo do Campo sem grande impacto, uma vez que o aumento no percurso é de aproximadamente 2 km. Como o encontro das avenidas Kennedy e Senador Vergueiro já possui solução viária adequada para o retorno, a linha consegue atender o campus na ida e na volta.

Legenda: Proposta para a linha 148DV1 (ida e volta). Acessível também via Google My Maps

A universidade pode ainda, ao invés de priorizar viagens entre São Bernardo do Campo e Santo André, modificar o trajeto dos fretados para mobilizar toda a frota em torno de uma ligação entre o campus São Bernardo do Campo e o Terminal Metropolitano de São Bernardo do Campo, permitindo conexão com as linhas da Metra. Tratar-se-ia de solução de conectividade entre o campus e o hub de transporte mais próximo, análoga às operações de fretados adotados na Estação Lapa da Linha 7-Rubi por empresas como Teleperformance e Intervalor, que oferecem ônibus fretados até o condomínio e-Business Park. Otimizar-se-ia a frota em torno de um percurso mais curto, mais barato e, portanto, a capacidade seria maior. Nos horários de menor movimento os fretados poderiam ainda permitir acesso a pontos intermediários, a depender do comportamento da curva volumétrica.

Legenda: Operação de ônibus fretado da Jumbo em 2017, utilizado por funcionários da Teleperformance nas proximidades da Estação Lapa

A solução de modificação no traçado do fretado permite mitigar o problema da linha 432, mas não é uma solução ideal, porque ainda assim segue mascarando o problema de inserção dos campi e jamais será capaz de oferecer o nível de capacidade do transporte urbano, que opera com veículos que permitem viajar em pé e, por atender diversos tipos de origens e destinos, tem grade horária mais flexível.

Para mitigação dos problemas de inserção urbana, urge que a comunidade acadêmica, com ou sem participação da Reitoria, implemente ações de urbanismo tático no entorno dos dois campi, a saber:

  1. Instalação de mapas com rotas a pé e rotas ciclísticas, identificação de equipamentos públicos e privados e informações sobre os tempos de viagem;
  2. Instalação de placas indicando a direção, a distancia e o tempo de percurso para a UFABC e quaisquer equipamentos lindeiros;
  3. Intervenções artísticas, pintando bancos de praças, postes e outros mobiliários, de forma a tornar espaços pouco convidativos em lugares ocupáveis, além disso, podem ser pintadas rotas nas calçadas, de forma a indicar um ou mais caminhos.

As ações sugeridas a seguir foram inspiradas pelas experiências do SampaPé e organizações como Cidadeapé, WRI Brasil e ITDP Brasil. Especialmente no caso do SampaPé, a organização possui três artigos muito oportunos publicados no Medium:

Uma segunda fase dos problemas de intervenção urbana pode contemplar mobiliário permanente de maior durabilidade e qualidade, a ser custeado pelas prefeituras, universidade e empresas privadas potencialmente beneficiadas (a contribuição pelos dois últimos atores é facultativa nos termos do marco regulatório vigente), bem como intervenções como travessias elevadas e iluminação dedicada para pedestres.

Legenda: Feira noturna realizada no início da Alameda da Universidade, no encontro com a Avenida Kennedy

Concomitantemente com as ações de urbanismo tático, sugiro ainda que se busque ampliações e melhorias na feira noturna que acontece na alameda que dá acesso ao campus de São Bernardo do Campo (antiga Avenida São Paulo). São as possibilidades em relação à feira noturna:

  1. Ampliação da extensão da feira ou deslocamento desta para que fique mais próxima do campus, de forma a tornar a caminhada mais convidativa;
  2. Ampliação dos dias e horários de funcionamento da feira;
  3. Busca de mais feirantes e/ou ampliação da permanência dos atuais, de forma a garantir que a feira noturna passe a funcionar em todos os dias úteis.
Legenda: Alameda da Universidade e ônibus da Linha 53 do sistema municipal são-bernardense: oferta ruim e adoção do infame cartão Legal são entraves relevantes

O acesso via alameda exige uma maior caminhada em comparação com o acesso pelas ruas 23 de Maio e Arcturus, no entanto, ele permite acesso mais rápido ao parque vizinho ao campus e ao eixo da Kennedy em direção ao Golden Square Shopping.


Informações adicionais

Abaixo você encontra hiperligações com informações adicionais sobre a universidade, que contribuem para a compreensão da dimensão dos problemas discutidos no artigo.


Colaborações: Diego Vieira, Gabriela Freires, Lucian De Paula e Renato Martins, que colaboraram em discussões sobre o tema



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